sexta-feira, 3 de abril de 2009

Um dia, numa locadora perto de você (4) – John Huston


O aventureiro John Marcellus Huston (1906-1987), além de roteiros de clássicos da era de ouro hollywoodiana (‘Jezebel’, de Wyller, ‘Seu Último Refúgio’, de Walsh, ‘Sargento York’, de Hawks) e participações marcantes como ator (quem esquece o “barão” Noah Cross de ‘Chinatown’?), legou ao cinema americano alguns de seus filmes mais memoráveis: da estréia, praticamente criando o film noir, em ‘O Falcão Maltês’ (também conhecido por aqui como ‘Relíquia Macabra’) com base no clássico pulp de Dashiel Hammet – e um dos raríssimos casos na história do cinema em que o filme é tão bom ou melhor que o romance que o inspirou – ao elegíaco ‘Os Vivos e os Mortos’, partindo do conto ‘Os Dublinenses’, de James Joyce, passando por um dos melhores filmes de assalto de todos os tempos (‘O Segredo das Jóias’, de 1950), um consistente tratado sobre a força destruidora da ganância (o magistral ‘O Tesouro de Sierra Madre’, 1948), um divertido filme de vigaristas feito em clima de festa com os amigos Humphrey Bogart, Peter Lorre e roteiro de Truman Capote (‘O Diabo Riu por Último’), um clássico sobre a guerra dos sexos travestido de filme de aventura (‘Uma Aventura na África’) e tantos outros trabalhos que ficaram na história. O ex-boxeador, ex-jornalista e ex-mais uma série de coisas retratou como poucos o mito do individualismo norte-americano, em que os protagonistas, trágicos, não têm, contudo, muita correspondência com o padrão de vida boêmio do realizador: o fatalismo de sua obra talvez tenha relação com a saúde sempre delicada da infância e pré-adolescência. Em suas memórias, ‘Um Livro Aberto’ (lançado aqui pela L&PM), escrito já no final da vida (1980), ainda era capaz de lembrar dos nomes de todos os médicos que o trataram, entre os dez e onze anos de idade: “Se me lembro bem deles é porque lançaram a Sombra da Morte sobre minha infância – uma sombra que me escureceu a vida durante mais de dois anos”.

O curioso é que, mesmo amando o cinema, não o tinha exatamente como a maior paixão: a pintura, o boxe, o jogo e a caça, “não necessariamente nesta ordem”, dividiam com a sétima arte os interesses do autointitulado contraventor, que casou cinco vezes (e divorciou-se quatro) e teve três filhos também envolvidos no seu metiér – a talentosíssima Anjelica (que estreou em um filme do pai, ‘Caminhando com o Amor e a Morte’ e levou seu Oscar em outro, ‘A Honra do Poderoso Prizzi’), o roteirista Tony (de ‘Os Vivos e os Mortos’) e o “bastardo” Danny, diretor e ator (‘O Jardineiro Fiel’) –, além do pai, Walter, ex-ator de vaudeville (e também oscarizado em um filme de John, ‘O Tesouro de Sierra Madre’). Uma experiência marcante – e muito provavelmente decisiva – na vida de John foi quando, em uma de suas internações quando pequeno, em um hospital de Los Angeles, recebeu a visita de ninguém menos que Charlie Chaplin. A família Huston se hospedara no Hotel Alexandria, no centro da cidade, ponto de encontro da pessoal de cinema, e quando soube que havia um garotinho doente no hotel, resolveu visitá-lo. Huston lembra assim o episódio, em ‘Um Livro Aberto’: “ ... Chaplin entrou. Meu coração disparou. Não pude refrear o entusiasmo. Hoje em dia não existe ninguém capaz de ocupar no mundo infantil uma posição sequer comparável à de Charlie Chaplin naquele tempo. Era mais que um astro da tela; era o próprio mito encarnado; ninguém imaginava que pudesse ser uma criatura de carne e osso”. Suas estrepolias em meio às filmagens de ‘Uma Aventura na África’ (1951), deixando em pânico o elenco e a equipe de filmagens em plena selva africana, e a famosa briga com o também excêntrico Errol Flynn em uma festa fazem parte da antologia hollywoodiana e estão no filme ‘Coração de Caçador’ (‘White Hunter, Black Heart’, dirigido e protagonizado por Clint Eastwood em 1990 e infelizmente também ausente das locadoras. Como ausentes estão, criminosamente, alguns dos melhores filmes de Huston.

'PAIXÕES EM FÚRIA' (‘Key Largo’, 1948). Mais um noir clássico, este, além do casal Bogart & Bacall (atuando juntos pela quarta e última vez), traz outro ícone do gênero, Edward G. Robinson. Bogie é Frank McCloud, veterano de guerra que vai até a Flórida visitar Nora (Bacall), a viúva de seu companheiro de combates. Em chegando ao hotel administrado pelo padrasto de Nora, James (Lionel Barrymore), descobre que este foi tomado pelo gângster em fuga Ricco (Robinson). A princípio, o durão McCloud prefere não se envolver, mas como a violência por parte de Rocco vai recrudescendo, nosso anti-herói (mais um na carreira de Bogart), cínico e desiludido, no melhor espírito idealista da era Fanklin Delano Roosevelt, começa a pensar seriamente na possibilidade de engajar-se às vítimas do mafioso – cuja figura foi inspirada em Al Capone (que justamente terminou seus dias na Flórida) mas contém também elementos biográficos de Lucky Luciano – e eliminá-lo. Claire Trevor, como a namorada alcoólatra de Rocco, ganhou o Oscar de atriz coadjuvante pelo filme. baseado em um famoso texto teatral, sucesso na Broadway, com roteiro de Huston e Richard Brooks.

'CIDADE DAS ILUSÕES' (‘Fat City’, 1972). Um dos mais interessantes retratos do universo decadente das lutas de boxe de um circuito secundário. Tully (Stacy Keach), antes um promissor lutador, hoje é alcoólatra e trabalha como peão em uma fazenda, mas, sonhando em um comeback, volta a treinar em uma academia. Lá vai encontrar o jovem Ernie (Jeff Bridges), que sonha em fazer carreira. Pra quem gosta de filmes sobre o esporte que parece que mais rendeu nas telas – ‘Marcado pela Sarjeta’, ‘Punhos de Campeão’, ‘O Invencível’, ‘Touro Indomável’, ‘Touro Indomável’, ‘Menina de Ouro’ -, é um prato cheio, ainda mais valorizado pela fotografia crua de Conrad Hall. Atuações marcantes de Keach, do jovem Jeff Bridges – um ano após despontar em ‘A Última Sessão de Cinema’, de Peter Bogdanovich – e de Susan Tyrrell, indicada ao Oscar do ano, como a namorada de Tully, Oma.

'O HOMEM QUE QUERIA SER REI' (‘The Man Who Would Be King’, 1975). Dois aventureiros, Peachy (Michael Caine) e Daniel (Sean Connery), que, tendo sido expulsos do exército britânico, rumam à Índia, então colônia inglesa, indo parar na região do Cafiristão, onde se fazem passar por divindades ao crédulo povo local, que não recebia a visita de um homem branco ali desde Alexandre, o Grande – o enredo do conto/filme se passa no século XIX. Baseado, claro, no clássico conto de Sir Rudyard Kipling, representado no filme por Christopher Plummer, é uma crítica ao imperialismo britânico, recorrente na obra do autor britânico (mas nascido em Bombaim). A trilha sonora é de Maurice Jarre (‘Lawrence da Arábia’, ‘Dr. Jivago’), falecido no último domingo, e o filme, que foi filmado em locação no Marrocos, é apontado por Michael Caine como o trabalho pelo qual gostaria de ser lembrado. Outra curiosidade: Huston planejava fazer o filme desde os anos 50, e várias duplas de atores foram aventadas: Bogart e Clark Gable, Burt Lancaster e Kirk Douglas, Robert Redford e Paul Newman – este último foi quem sugeriu Connery e Caine. Já lançado em DVD, mas atualmente fora de catálogo.

'À SOMBRA DO VULCÃO' (‘Under the Volcano’, 1984). Este á um daqueles projetos – como as alucinações burroughseanas contidas em ‘O Almoço Nu’ ou a revolucionária graphic novel de Alan Moore ‘Watchmen’ – considerados durante muito tempo infilmáveis ... até que alguém apareceu dispondo-se a respirar fundo e arregaçar as mangas. Baseado no romance com toques autobiográficos do inglês Malcolm Lowry – disponível na coleção pocket da L&PM -, tem como protagonista o ex-cônsul britânico em Cuernavaca (México) Geffrey (Albert Finney), que bebe chamando a morte (mais ou menos como personagem de Nicolas Cage em ‘Despedida em Las Vegas’) na tradicional cerimônia do Dia dos Mortos, enquanto recebe a visita de sua ex-mulher, Yvonne (Jaqueline Bisset), que tenta a reconciliação, embora já o tenha traído com seu irmão mais jovem, Hugh (Anthony Andrews). Um dos filmes mais devastadores de Huston, vale-se ainda do excelente trabalho de um dos melhores diretores de fotografia de todos os tempos, o genial Gabriel Figueroa, colaborador constante de Buñuel e John Ford.

'A HONRA DO PODEROSO PRIZZI' (‘Prizzi’s Honor’, 1985). Penúltimo filme de Huston, trazendo sua filha Anjelica e o então eterno noivo dela, Jack Nicholson, além da à época quentíssima Kathleen Turner. É uma divertida comédia que se passa no seio de uma família mafiosa e tem como tema o código de honra da instituição. Charley (Jack), um dos “soldados” contratados dos Prizzi, é namorado de Maerose (Anjelica), integrante da família, mas passa a arrastar suas asinhas para o lado de Irene (Turner). Esta é apresentada como contadora da máfia, mas o que Charley não sabe é que ela exerce exatamente as mesmas funções que ele, e num dado momento uma escolha terá de ser feita. O Oscar de coadjuvante para Anjelica terminou por consagrou três gerações da família Huston.

Entre os Huston inéditos em DVD, não vi ‘A Lista de Adrian Messenger’ (1963) e gostaria muito. ‘Freud – Além da Alma’ (1962), retratando o primeiro caso do dr. Freud, com Montgomery Clift no papel principal e roteiro de ninguém menos de Jean-Paul Sartre, também é digno de menção, e o testamento hustoneano, o belo ‘Os Vivos e os Mortos’ – que chegou a sair em VHS por aqui, no século passado -–, é o fecho perfeito de uma das trajetórias mais dignas entre os realizadores do período clássico hollywoodiano. Dos Huston disponíveis em locadoras, além dos citados ‘O Falcão Maltês’ (ou ‘Relíquia Macabra’), ‘O Tesouro de Sierra Madre’, ‘O Segredo das Jóias’, ‘Uma Aventura na África’ e ‘O Diabo Riu por Último’, merecem destaque: ‘O Emblema Rubro da Coragem’, que, embora não se compare ao maravilhoso romance de Stephen Crane - até porque foi impiedosamente mutilado pelos produtores – tem cenas memoráveis e rendeu um grande livro, ‘Filme’ (lançado aqui pela Cia. das Letras), da jornalista da New Yorker, Lilian Ross, um clássico do jornalismo literário; o crepuscular ‘Os Desajustados’, com o trio de anjos caídos Clark Gable, Marilyn Monroe e Montgomery Clift (Gable e Marilyn deixaram registradas neste filme suas derradeiras performances); e o psicanalítico ‘Os Pecados de Todos Nós’, com Brando, Liz Taylor e Brian Keith às voltas com diferentes distúrbios e participação não creditada de Francis Ford Coppola no roteiro.

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