domingo, 26 de abril de 2009

Um dia, numa locadora perto de você (5) – JONATHAN DEMME

Quem vê a cara de guri, o ar juvenil e a expressão risonha do realizador americano Jonathan Demme nos extras do remake de ‘Sob o Domínio do Mal’ (‘The Manchurian Candidate’, 2004) não imagina que ali está um sujeito que já conta com mais de 60 anos de idade – 65, hoje –, ainda que os cabelos grisalhos já sugiram que a jovialidade do sujeito está mais no espírito do que na data impressa na certidão de nascimento. Os filmes de Demme também são assim: uns mais sérios, outros descompromissados, todos eles, no entanto, têm um frescor e uma leveza que, antes de diluí-los, dão um jeito de suavizar o enredo, sem retirar-lhe a densidade. Ou seja: entretêm sem fazer força, e sem estarem programados pra isso. São assim naturalmente. Prova disso é o clima de diversão que brota espontaneamente na narrativa, no que é muito ajudado pela escolha feliz das canções que compõem a trilha sonora – Demme é grande fã de rock, possui intimidade com o universo pop e tem vários documentários de concertos no currículo: ‘Heart of Gold’ (2005), de Neil Young (disponível nas locadoras) e ‘Storefront Hitchcock’ (1997), de Robyn Hitchcock, ex-líder da mítica banda inglesa The Soft Boys. Hitchcock, por sinal, faz pontas em vários filmes de Demme e canta um número inteiro no recente ‘O Casamento de Rachel’, em que Neil Young também tá presente, mas indiretamente: Tunde Abedimpe, o cantor da grande banda do momento, o TV On The Radio, canta ‘Unknown Legend’ na cena de seu noivado (ele é o cara que vai casar com a Rachel). Além disso, tem gospels (o verdadeiro canto negro americano, favor não confundir com essa música de igreja tacanha que os evangélicos brasucas canhestros produzem em programinhas de TV de auto-ajuda e shows da fé picaretas), samba (batucada e mulatas na festa de casamento), rap, reggae, ... entra de tudo no caldeirão multi-referencial de Demme (não queria usar o termo multiculturalismo, mas não me ocorre outro), mesmo quando o tema do filme é um difícil acerto de contas familiar, tendo por mote a volta pra casa de uma viciada em drogas em recuperação, Kym (Anne Hathaway deveria ter levado o Oscar do ano).

Rachel’, aliás, exemplifica bem como o cinema de Demme conjuga inventividade, densidade e alta capacidade de entretenimento: enquanto a câmera na mão investiga a intimidade das relações familiares – revelações importantes virão à tona ao longo da narrativa –, o espectador não deixa de cativar-se pelo clima de celebração que permeia os preparativos pra festa de casamento. Tamanho poder de diversão, além do fato de seus filmes terem sido marcantes para uma geração que cresceu na década de 80 – ainda ostensivamente reverenciada, parece que nunca vai terminar esse revival – não sensibilizaram, contudo, as distribuidoras nacionais, que ainda mantém fora de catálogo alguns dos principais trabalhos de Demme, mesmo que trate-se do diretor dos blockbusters ‘O Silêncio dos Inocentes’ e ‘Filadélfia’. Quem sabe o sucesso recente do ótimo ‘O Casamento de Rachel’ faça os caras mudarem de ideia. Algumas lacunas incompreensíveis:

MELVIN E HOWARD (MELVIN AND HOWARD, 1980)
Primeiro sucesso – de público e crítica – de Demme, é baseado numa história real e conhecida: o loser Melvin Dummar (Paul Le Mat), um leiteiro sem sorte e constantemente em crise financeira, um belo dia, dirigindo a esmo, cruza com um sujeito esquisito, a quem dá carona. Aparentemente sem maiores consequências, o episódio terá inesperados desdobramentos: dias depois, Melvin recebe uma carta, informando-o que tem para receber parte da herança do excêntrico magnata Howard Hughes – aquele sujeito estranho e maltrapilho a quem dera carona – que acaba de morrer. O filme que impulsionou a carreira de Demme e evidenciou seu gosto por tipos peculiares da sociedade norte-americana, traz o verdadeiro Melvin numa ponta, deu o Oscar de melhor atriz coadjuvante a Mary Steenburgen (como a mulher de Melvin, fanática por aqueles programas de concursos na TV) e de melhor roteiro a Bo Goldman – Robards também foi indicado a melhor coadjuvante.

STOP MAKING SENSE (1984)
Rivaliza com ‘The Last Waltz’, de Scorsese, pelo posto de melhor documentário de rock de todos os tempos. Pra meu gosto, é melhor: desde a concepção do espetáculo – ajuda muito, claro, a cabeça fervilhante de David Byrne – que vai ao encontro da ideia da banda de parecer gente comum, corriqueira apresentando-se num palco. É quase uma obra a quatro mãos, de dois caras que sabem o que fazem – não tem nada aleatório ali, a não ser que o que se capte na hora sirva à idéia geral, do espetáculo sendo construído. O filme começa com o pessoal da técnica montando o palco e Byrne chegando com seu violão numa mão e um aparelho de som portátil na outra. Ajeita-o no chão e dá o play. Ouve-se uma base pré-gravada e ele já manda a primeira – a famosa versão de ‘Psycho Killer’ que por essas bandas é mais conhecida que a original registrada no álbum de estréia, ‘‘77’. Aos poucos, vão entrando Jerry Harrison, o casal Tina & Chris Franz e a super-banda funk que acompanhava os Heads então. Byrne, com seu famoso terno uns dez números acima, movimenta-se o tempo todo – em dado momento, dá o microfone para um câmera, que canta um verso (justamente ‘Stop Making Sense’) de ‘Girlfriend is Better’. É um filme, portanto, vivíssimo, e apenas não um simples concerto filmado de uma banda bacana – então em seu grande momento de exposição.

TOTALMENTE SELVAGEM (SOMETHING WILD, 1986)
Charlie Driggs (Jeff Daniels) é um yuppie meio pateta e entediado, que tem o costume de roubar pequenos objetos em cafés, o que não passa despercebido por Lulu (Melanie Griffith), que o aborda. Num primeiro momento assustado, ele logo vai deixar-se seduzir pela conversa dela, e daí a cair na estrada com a maluca, é só um pulinho. Inicia então uma trip que, ao mesmo tempo que vai sacudir o marasmo da sua vidinha mais-ou-menos, trará perigo real: o ex-marido de Lulu (que tem esse nome em homenagem à personagem de Louise Brooks no clássico expressionista ‘A Caixa de Pandora’, de Pabst – ela usa uma peruquinha morena com corte Chanel que é idêntica à da encrenqueira do filme alemão). O cara é um ex-condenado da justiça durão e não vai aceitar assim tão fácil ver sua mulher mulher nos braços de um banana. Muito comparada a ‘Depois de Horas’ de Scorsese (lançado dois anos antes, porém bem mais dark), a "odisséia" do atrapalhado Charlie, que vai ficar algemado em um quarto de motel por sua ousada (pros moldes dele) parceira, que vai acompanhá-la em um baile de reencontro de sua turma do high-school e será apresentado à sua mãe como seu marido, é um grande barato. Curiosidades:The Feelies, uma das grandes bandas do rock indie americano dos anos 80 (já apareceu no "Paradão" aqui do blog) aparece como The Willies, o grupo que anima o baile do reencontro da turma de Audrey, tocando versões de ‘Fame’ (Bowie/Lennon) e ‘I’m a Believer’ (Monkees), além da faixa-título de seu clássico álbum de estréia, ‘Crazy Rhythms’; o papel do ameaçador marido de Audrey era pra ser do cantor Chris Isaak, então um ilustre desconhecido, mas ele preferiu finalizar seu segundo álbum. Só chegaria ao estrelato quatro anos depois, quando David Lynch incluiu uma versão instrumental de sua canção ‘Wicked Game’ na trilha de ‘Coração Selvagem’, tornando-a o hit que não conseguira ser até então; os diretores independentes John Waters (‘Pink Flamingos’, ‘Hair Spray’) e John Sayles (‘Lone Star’, ‘A Lenda da Vida’) aparecem em pontas: o primeiro como um vendedor de carros usados, o segundo, como um policial de motocicleta. Divertidíssimo, emocionante, um enorme sucesso em sua época – assim como a trilha, que trazia um sacolejante dueto de David Byrne e Célia Cruz, New Order, uma versão soul de ‘Ever Fallen in Love?’, dos Buzzcockz, pelos Fine Young Cannibals, entre outras faixas. Imperdoável que não se encontre nas locadoras.

DE CASO COM A MÁFIA (MARRIED TO THE MOB, 1988)
Comédia ambientada em Miami, em que um agente do FBI, Mike (Matthew Modine), tenta infiltrar-se numa família mafiosa pra pegar o capo Tony ‘The Tiger’ Russo (Dean Stockwell), que acaba de dar cabo do também mafioso Frank DeMarco (Alec Baldwin), que se meteu a besta com a sua amante. DeMarco era casado com a bela Angela (Michelle Pfeiffer), que vinha tentando convencê-lo a abandonar os “negócios” e levar uma vida honesta. No funeral do cara, Russo aproveita pra tentar chegar perto da viúva, mas logo, logo sua mulher, Connie (a excelente Mercedes Ruehl) vai perceber e a confusão só aumenta quando Mike e Angela se dão conta de que estão apaixonados um pelo outro – mas Mike tem de fazer o seu trabalho, que é prender Tony usando Angela. Outro título muito divertido de Demme, mais uma vez com trilha escolhida por David Byrne: tem New Order, Debbie Harry, Ziggy Marley, Brian Eno, Feelies e Tom Tom Club, entre outros.

Acho que não seria pedir demais que, na esteira de um possível lançamento em DVD destes filmes de Demme – em especial ‘Stop Making Sense’ e ‘Totalmente Selvagem’ –, lembrassem também o longa dirigido por David Byrne: ‘Histórias Verdadeiras’ (‘True Stories’, 1986) inspirou o álbum homônimo dos Talking Heads – na verdade, as canções são uma espécie de apêndice do filme – e foi inpirado por notícias de jornal bizarras coletadas por Byrne, que forneceram personagens tipo "A Mulher mais preguiçosa do mundo", um sujeito desesperadamente à procura de casamento, entre outros tipos excêntricos. Tudo bem ao gosto do compositor de ‘Once in a Lifetime’, ‘The Big Country’ e outras canções que voltaram seu olhar para o ridículo do american way of life. Byrne atua como o narrador das histórias, que se passam no já naturalmente peculiar Texas. ‘Histórias Verdadeiras’ passou numa daquelas mostras de cinema de Porto Alegre de antigamente e depois, se não me falha a memória, entrou em cartaz no finado Ponto de Cinema Sesc, sendo desde então esquecido por nossas distribuidoras, mas não pelo público que teve a sorte de vê-lo.

Mas voltando a Demme, que vem demonstrando uma veia política em seus trabalhos recentes (rodou documentários sobre o ex-presidente democrata Jimmy Carter e o ativista Jean Dominique, que lutou pela democracia no Haiti até ser assassinado em 2000, e faz também um pequeno comentário em 'Rachel', mostrando um soldado de licença da ocupação do Iraque, que após o casamento terá de voltar ao oriente médio): o cara tá trabalhando em ‘Neil Young Trunk Show’ e tem programado para o ano que vem um documentário sobre Bob Marley. Seria uma boa que esses trabalhos também pintassem por aqui, mesmo que só nas locadoras.

Demme no set de 'O Casamento de Rachel'

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