quinta-feira, 16 de abril de 2009

Say It Loud, I'm Black and I'm Proud (1) - os filmes

Ao final do ano, poderá se discutir se foi o melhor, o mais importante, mas provavelmente nenhuma outra programação roubará do ciclo ‘Black’, que iniciou terça na Sala P.F. Gastal, da Usina do Gasômetro, o título de evento cinematográfico mais divertido do ano. São 15 longas – mais o elogiado e inédito ‘Hunger’, que entra em cartaz em maio – e 8 curtas e média-metragens que têm como tema comum a questão do negro, pegando o gancho da histórica eleição do primeiro presidente de origem afro na história dos Estados Unidos. Há documentários e filmes de ficção, filmes políticos e de entretenimento, filmes norte-americanos, brasileiros, britânicos e franceses, mas é claro que o maior apelo da mostra recai sobre a onda blaxploitation dos anos 1970, os famosos filmes “de negros para negros” que impulsionaram as carreiras de futuros astros como Pam ‘Foxy Brown’ Grier e Richard ‘Shaft’ Roundtree e vinham acompanhados de algumas das melhores trilhas pop de todos os tempos. Pela primeira vez na história do cinema americano os negros deixavam os papéis de meros figurantes – ou, pior, a parte podre da história – pra serem os protagonistas, escancarando o orgulho da raça sem medo ou hesitação. O cinema blaxploitation teve influência direta em um sem-número de filmes e séries de TV de temática policial rodados nas ruas de Nova Iorque e L. A. após a onda, na primeira metade dos 70 – ‘Warriors’, ‘Serpico’, ‘Starsky and Hutch’, e até ‘Taxi Driver’, de Scorsese (cuja trilha, aliás, último trabalho do maestro Bernard Herrmann, famoso pela música de ‘Cidadão Kane’ e dos filmes de Hitchcock, tem uma discreta mas inconfundível levada funk) –, mas ao final daquela década já demonstrava sinais de desgaste. Nos anos 90, porém, o Soul Cinema e sua música sensacional passaram a ser resgatados por algumas das figuras-chave da cultura pop dos anos 90, tipo Quentin Tarantino e os DJ’s ingleses.

Bom, mas COMPANHIA MAGNÉTICA te dá algumas informações básicas sobre alguns dos highlights da festa funk da Usina, por ordem cronológica.

RIFIFI NO HARLEM (‘Cotton Comes to Harlem’; dir.: Ossie Davis; 1970)

Um dos mais divertidos títulos da mostra, este filme toma por base um texto do escritor noir Chester Himes (‘O Harlem é Escuro’, ‘Um Jeito Tranquilo de Matar’), mas o diretor retira toda a escuridão da obra e injeta muito humor na história de dois tiras, Grave Digger Jones (Godfrey Cambridge) e Coffin Ed Johnson (Raymond St. Jacques), que investigam um ex-detento que virou reverendo e promete aos fiéis irmãos uma redentora volta à África. Cheio de momentos cômicos e piadas impagáveis, o tíitulo remetem ao passado de escravidão em que os negros trabalhavam nas plantações de algodão (“cotton”) no sul da América, e a solução da trama é mais uma sacada interessante, justamente sobre esse passado, uma revanche bem-humorada sobre o sistema. Nunca antes uma câmera passeou tanto pelas ruas do Harlem – entra até no mítico Apollo Theater. Ossie Davis, o diretor, falecido em 2005, era também ator, e embora o nome talvez não seja tão conhecido por aqui, é um daqueles rostos que o sujeito vê e lembra na hora de diversos filmes (assim como sua mulher, Ruby Dee, tá em vários Spike Lee). Disponível nas locadoras em DVD.

SWEET SWEETBACK’S BAADASS SONG (dir.: Melvin Van Peebles; 1971)

O mais impactante entre todos os filmes blaxploitation, não só pelas intenções vanguardísticas (jump cuts em profusão, imagens psicodélicas, montagem não-linear) do diretor Peebles – que adotou o “Van” pra pensarem que ele era holandês e assim facilitar o financiamento -, mas também pelo radicalismo temático: após presenciar um brother engajado ser vítima de abuso policial, Sweetback entra em ação, espancando os dois tiras. Na fuga, em direção à fronteira com o México, passa por South Central (mais ou menos o equivalente em Los Angeles ao Bronx novaiorquino). Por conta das cenas de violência e sexo ousadas – até o filho de Melvin, Mario, então com 13 anos, entra na onda -, a película recebeu uma escandalosa classificação X da censura, o que não a impediu de lotar os cinemas: os Panteras Negras adotaram o filme. Também, pudera: Sweetback enfrenta o sistema de peito aberto, ao melhor estilo by all means necessary de Malcolm X. Disponível em DVD.

SHAFT (dir.: Gordon Parks; 1971)

À altura dos últimos andares de um arranha-céu novaiorquino, a câmera vai descendo às ruas, até focar John Shaft (Richard Roundtree), que tenta atravessar a rua e quase é atropelado por um motorista apressado. Manda o cara se foder – e aí soam os acordes da famosa introdução em wah-wah do tema de Isaac Hayes. Shaft é um ícone: tiradas espirituosas, auto-confiança ao extremo pra lidar com a malandragem, delicadeza e decisão pra tratar o mulherio. E o cara ainda habita um ap. cool, típico daqueles filmes ambientados na big apple, um loftzinho bacana que vai aparecer pela primeira vez no momento em que ela abate uma de suas vítimas – a moça botou o olho no cop durão instantes antes num bar, e logo depois da brincadeira vai ser dispensada de forma bem direta, sem a menor cerimônia. Mas a trama do filme é a seguinte: nosso herói é procurado por Bumpy, barão da contravenção no Harlem e seu velho desafeto, que teve a filha sequestrada pela máfia – os caracamanos querem lhe tomar a área. Shaft então convoca uns ativistas conhecidos, que encontram-se na clandestinidade, pra que o ajudem a libertar a menina. ‘Shaft’, o filme, é diversão garantidíssima.

SUPERFLY (dir.: Gordon Parks Jr.; 1972)


Dirigida pelo filho do diretor de ‘Shaft’, esta é provavelmente a primeira história de traficante em que o protagonista sofre com crise de consciência – e o cara ainda atende por Priest (“sacerdote”)! Ron O’Neal interpreta nosso dealer existencialista, que desfila por aí todo cheio de estilo num carrão da hora e rodeado de gostosas, mas quer largar o trampo. Sua ideia é convencer o parceiro Eddie (Carl Lee) a botar a mão nas economias da dupla e comprar um último carregamento de cocaína, forrar os bolsos e sumir do mapa. Claro que não vai ser tão fácil assim. A trilha de Curtis Mayfield geralmente é considerada não só a melhor do gênero mas uma das melhores de toda a história do cinema.

BLACULA (dir.: William Crain; 1972)


Na onda do Soul Cinema, não podia faltar um vampiro afro. O príncipe Blacula (William Marshall), transformado em sugador de sangue ("mais mortífero que o Drácula") na sua passagem pela Transilvânia no século XVIII, vai parar na ensolarada Califórnia 200 anos depois, pra encontrar Tina (Vonetta McGhee), aquela que acredita ser a reencarnação de sua amada. O filme rendeu diversas referências pop – é citado em vários episódios dos Simpsons, o vídeo da canção ‘Who Cares’, do Gnarls Barkley, fala sobre os percalços de um vampiro de nome Blacula – e apenas um ano depois de rodado, já teve sua sua sequência, ‘Scream, Blacula, Scream’ (pra ver como esse pessoal da blaxploitation trabalhava rápido). Também foi o primeiro a levar o Saturn Awards, que desde 1972 premia os melhores trabalhos do ano em ficção científica e terror. O também cantor Marshall morreu em 2003. Tinha o mal de Alzheimer. ‘Blacula’ passa no já tradicional Pro jeto “Raros” da Usina, nesta sexta-feira, 17, às 19h, em sessão única.

THE THING WITH TWO HEADS (dir.: Lee Frost; 1972)


Só pela premissa, deve ser ultra-divertido – e com certeza ainda mais bizarro que o Drácula negro. O veterano Ray Milland (‘Farrapo Humano’, de Billy Wilder, ‘Disque M Para Matar’, de Hitchcock) não devia estar no seu perfeito juízo quando aceitou fazer o papel de Maxwell Kirshner, um cientista ultra-racista que, após um experimento desastrado, passará a ter de conviver com a cabeça do apenado (negro, naturalmente) Jack Moss (Roosevelt ‘Rosey’ Rosey Grier). Isso mesmo: as duas cabeças passarão a ocupar o mesmo corpo e tentarão agredir-se o tempo todo. Este também passa no “Raros”, na sexta-feira seguinte, 24, às 21h, também em única sessão.

HEAVY TRAFFIC (dir.: Ralph Bakshi; 1973)


Único desenho animado do pacote, é o segundo trabalho da fera Bakshi (‘American Pop’, ‘Cool World’), de origem palestina mas criado no Brooklyn. Michael, um rapaz branco filho de pai italiano e mãe judia, arruma problemas com a família quando passa a sair com uma garota negra. Curiosidade: ‘Heavy Traffic’, originalmente, era pra ser uma adaptação do clássico romance barra-pesada ‘Última Saída Para o Brooklyn’, do junkie de carteirinha depois reabilitado Hubert Selby Jr.. Lançado um ano após do sucesso de ‘O Gato Fritz’. O diretor ainda tem outro filme de temática black no currículo, ‘Coonskin’, feito dois anos depois, em que a voz de um dos personagens é feita por ninguém menos que o rei do xaveco, Barry White.

FOXY BROWN (dir.: Jack Hill; 1974)


Foxy é irmã de um pusher que deve uma grana pra máfia. Ela coloca no circuito seu namorado, um agente federal, pra resolver a parada, mas os mobsters dão cabo dele, deixando-a sem outra alternativa senão partir, ela mesma, pra ação. Pam, 60 anos em maio próximo, também cantora, era a principal estrela feminina da blaxploitation (‘Coffy’, ‘Black Mama, White Mama’, ‘Scream, Blacula, Scream!’), e voltou aos holofotes pelas mãos de Tarantino em ‘Jackie Brown’, em 1997.


Além destes filmes, entre os mais significativos – e sui generis – do período, duas produções recentes prestam tributo ao Soul Cinema e são igualmente programa obrigatório pros interessados nos trabalhos dos desbravadores brothas and sistas setentistas.

BAADASSSSS CINEMA (dir.: Isaac Julien; 2002)


Este passa junto com outro longa (‘The Darker Side of Black’, de 1993) e um curta (‘The Attendant’, de 1992) no programa ‘Filmes de Isaac Julien’, do diretor londrino, cujo trabalho não se resume apenas ao cinema – ele também produz vídeo-instalações – e é inédito no Brasil. O cara entrevistou as estrelas Fred Williamson, Pam Grier e Richard Roundtree, os diretores de ‘Sweet Sweetback’s Baadassss Song’, Melvin Van Peebles, que fala sobre o pioneirismo de seu impactante filme de 1971, e ‘Black Caesar’, Larry Cohen, o historiador Armond White, o crítico bell hooks, além de Isaac Hayes – as trilhas sonoras são objeto de grande discussão no filme –, além, claro, do arroz-de-festa Tarantino. Produzido para a TV, estreou no prestigiado Independent Film Channel americano. A trilha sonora foi lançada no Brasil e é do caralho, 13 petardos funk de primeiríssima qualidade – tema do nosso próximo post, te liga!

BAADASSSSS! (‘O Retorno de Sweetback’; dir.: Mario Van Peebles, 2003)


Mario, ator de ‘The Cotton Club’, de Coppola, e diretor de ‘New Jack City’, não só escreveu e dirigiu, mas também fez o papel de seu pai, Melvin, nesta recriação das filmagens e lançamento do clássico ‘Sweet Sweetback’s Baadasssss Song’, baseado em seu livro, que também leva o nome do filme. Da dificuldade de arranjar financiamento aos constantes dribles nos colaboradores, até a angústia da estréia e a adoção pelos Panteras Negras, o filme, além da extrema felicidade com que retrata a difícil relação do artista independente com os tubarões dos estúdios, o clima free your mind and your ass will follow da contracultura e o tenso momento de transformações na sociedade americana, ainda examina as relações entre o artista, que vive 24 horas por dia com mente voltada pra sua obra, e o filho – que faria um pequeno porém controverso papel no filme. Sucesso em Sundance, em 2004, tem como produtor executivo Michael ‘Miami Vice’ Mann, participação de Ossie Davis como o pai de Melvin, John Singleton (diretor de ‘Boyz ‘N the Hood’), como um DJ, e Adam West, o eterno Batman da série de TV, numa ponta hilária, como um produtor, digamos, sui generis. Também disponível nas locadoras.

No próximo post, as trilhas.

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