quarta-feira, 8 de abril de 2009

KURT & MARVIN: que falta eles fazem!


Um cantava doces canções (pelo menos na aparência) embaladas pelos mais sofisticados arranjos da música pop da época, executados por músicos feras em seus instrumentos, rechados de cordas, vocais femininos, swing, toques jazzísticos, ... um luxo só. Já o outro notabilizou-se por igualmente cantar e compor boas melodias, mas, sua interpretação, rascante, vinha emoldurada por uma barulheira dos infernos, instrumentação econômica, tocada em ritmos rápidos e acordes de guitarra serra elétrica, bateria tonitruante, baixo nervoso e pesadão. O primeiro era um negro sorridente, que, contudo, escondia (nem tanto assim) cicatrizes profundas, principalmente por conta de suas péssimas relações com o pai, pastor protestante (e intolerante). O segundo, um branquelo cheio de espinhas na cara (típico white trash americano), raramente sorria – a não ser cinicamente, debochando do sorriso de contentamento de sua geração anódina e conformista, como no clipe de ‘Heart-Shaped Box’. O primeiro morreu há 25 anos (1º de abril de 1984), com um tiro no peito disparado pelo próprio pai; o segundo encarregou-se ele mesmo de puxar o gatilho, apontado pra própria cabeça, acabando com tudo há 15 anos (5 de abril de 1994). Aparentemente bem diferentes, têm, contudo, muitas semelhanças.


Marvin Pentz Gay Jr. nasceu em 2 de abril de 1939, e, não fosse o episódio infeliz da véspera de seus 45 anos, teria completado 70 anos de vida na quinta-feira da semana passada. Talento precoce, já cantava – inclusive sendo o solista – no coral da igreja do pai, ministro de uma tal House of God, organização ultra-conservadora que reunia elementos de várias religiões, tais como o Cristianismo mais xiita e o Judaísmo e o Pentecostalismo mais ortodoxos. Até aí, uma barra suportável – só que Marvin Gay sr. tinha o costume de surrar o pequeno Marvin quase que diariamente. A revolta foi em parte minimizada pela música: na adolescência, o cara tornou-se exímio pianista e baterista. Convocado pelo exército – e posteriormente dispensado -, quando volta participa de uma série de grupos doo wop (aqueles grupos vocais negros dos anos 50, que proliferavam absurdamente nas esquinas da América do pós-guerra), e não demorou pra que se firmasse em um deles, os Moonglows, que gravaram singles significativos para a lendária Chess Records. Em uma apresentação em Chicago, foram vistos por Berry Gordy Jr., o chefão da Motown, que logo tranformaria-se no principal selo de música pop negra da América, e o cara não pôde deixar de perceber o talento daquele garoto de pouco mais de 20 anos que era a verdadeira alma do grupo. Era 1961, e Marvin Gaye – já com o “e” adicionado ao sobrenome, não pra debelar possíveis confusões quanto à sua orientação sexual mas como uma homenagem a seu ídolo, o astro soul Sam Cooke, e também pra diferenciar do nome do pai –, já assinava contrato com a gravadora, primeiramente como músico de estúdio – foi baterista de várias gravações de Smokey Robinson e Martha Reeves & The Vandellas – e depois lançando-se como cantor, ora cantando sozinho, ora em dupla (os famosos duetos com Mary Welles e, principalmente, Tammi Terrell). De 1961, data também seu casamento com Ana Gordy, irmã do chefe Berry.

Ao final daquela década, o já super astro Marvin Gaye, angustiado com o fato de as canções que gravara até então não tratarem dos temas mais palpitantes da sociedade americana de sua época – a luta pelos direitos civis dos negros, o Vietnã, ... – decidiu partir pra algo mais maduro, e mostrou ao chefe novas músicas, para um álbum que pretendia lançar em breve. Gordy ouviu e não gostou, achou que o material, a despeito da qualidade inquestionável, não tinha apelo comercial, e vetou seu lançamento. Aí, apareceu o lado faca-na-bota de Marvin, escolado nas brigas intermináveis com o pai: “se este disco não sair, não gravo absolutamente mais nada pra gravadora, nunca mais!”. O centralizador e autoritário Gordy sabia com quem tava lidando, e cedeu, supondo que o resultado imaginado, um fracasso retumbante de vendas, iria amainar o “radicalismo” do cunhado ... acontece que 'What's Goin' On', lançado em 1971, não só obteve resposta imediata de público e crítica, como alcançou o topo das paradas americanas, convertendo-se em clássico instantâneo e no maiot hit de toda a história da Motown.

Marvin era assim, movido pela paixão, e quando sentia-se contrariado, respondia à altura. Não se dobrava a pressões, agia de acordo com suas convicções, e por conta dos insolúveis conflitos internos, motivados pela covardia do pai e todo o sentimento de injustiça de que tinha sido vítima desde criança, trazia dentro de si um turbilhão de sentimentos, por vezes aparentemente contraditórios (romantismo incurável, revolta profunda, imensa necessidade de paz interior (mas com os demônios sempre à espreita), obsessão sexual desmedida), que, quando vinham à tona, produziam um furacão à sua volta, muitas vezes causando episódios embaraçosos – não era tão raro o cidadão entrar em conflito com a própria platéia de seus shows, por conta desta necessidade imensa e quase impreenchível de sentir-se amado/respeitado/ouvido pra compensar os anos de abuso psicológico e físico sofridos das mãos do pai. Nas liner notes da edição de luxo de ‘Let’s Get It On’ – seu álbum dedicado ao prazer do sexo casual e sem culpas – lançada em 2001 (o álbum original é de 1973), David Ritz, seu biógrafo (‘Divided Soul: The Life of Marvin Gaye’), dá um testemunho significativo sobre o estrago produzido na mente e na alma do filho do pastor: “Na mente de Marvin, o sucesso de ‘Let’s Get It On’, como um estimulante sexual só aprofundou sua confusão. Ele me disse – e também para uma dúzia de pessoas – que sentiu-se como uma fraude. Não era confortável pra ele o papel de Love Man, o futuro título de um disco que ele rejeitaria pelo mais sombrio ‘In Our Lifetime’, referindo-se ao Apocalipse. O apocalipse pessoal de Marvin nunca esteve distante de seus pensamentos. Ele procurava o caos; sua queda por um drama auto-destrutivo era assustadora. ... O significado do sexo era uma questão que assustava Marvin. Porque ele era o filho de seu pai, e porque este pai era uma figura de frente de uma seita esotérica fundamentalista cristã, Marvin nunca liberou-se totalmente das noções extremamente moralistas de seu treinamento religioso inicial ... Quando criança, Marvin era obrigado a ficar nu, então apanhava de cinto de seu pai. ... Sua visão de sexo era desconfortável, atormentada permeada pela dor”. O episódio de sua morte é o triste ponto de chegada de uma existência carregada de desentendimentos: após o término daquela que seria sua última turnê, em agosto de 1983, profundamente deprimido, muda-se pro lar paterno, onde passa a maior parte do tempo trancado no quarto. Quando sai, é briga na certa com os pais – e geralmente acompanhada de uma tentativa de suicídio. Após uma briga mais áspera entre seus pais, por um motivo besta – um documento guardado em lugar errado (!) –, Marvin Jr. vai intervir e é baleado no peito por Marvin Sr. Ironicamente, com a arma que havia presenteado o velho quatro meses antes. Era 1º de abril de 1984, véspera do aniversário de 45 anos do soulman.

A trajetória de Kurt Donald Cobain foi igualmente atribulada. Nascido em 20 de fevereiro de 1967 na pequena Aberdeen, no estado de Washington (próxima a Seattle), desde pequeno demonstrava interesse em música, cantando canções dos Beatles já aos dois anos de idade. Carismático, o centro das atenções da família, esta infância inicialmente feliz começou a mudar de figura com o divórcio dos pais, quando o garoto tinha oito anos. Se pra alguns a separação dos pais e a consequente dissolução da família na infância é um golpe duro mas assimilável, para o pequeno Kurt foi um choque de proporções gigantescas. Dá pra se ter uma ideia do sentimento de perda do garoto pelos escritos de sua tia Mari, em um trabalho para seu curso de economia doméstica, quando Kurt contava com mais ou menos um ano e meio de vida, e que constam de sua biografia escrita por Charles R. Cross, ‘Mais Pesado que o Céu’, lançada no Brasil pela Editora Globo em 2002: “Sua mãe cuida dele a maior parte do tempo, ela demonstra seu afeto carregando-o, fazendo-lhe elogios quando ele merece e participando de suas atividades. Ele responde ao seu pai porque, ao vê-lo, ele sorri e gosta que seu pai o carregue. ... sua reação ao sono é chorar quando é deitado para dormir. Ele está tão interessado na família que não quer deixá-los. ... É um bebê feliz, sorridente e sua personalidade está se desenvolvendo por causa da atenção e do amor que está recebendo”.

Com o núcleo familiar esfacelado, Kurt tornou-se um rapaz introvertido, inseguro, o que tornou-o um estranho até para seus amigos mais chegados. Primeiramente, foi morar com a mãe, mas um ano depois mudou-se para a casa do pai. Não adaptou-se a nenhum dos novos lares, e seu interesse inicial em esportes não foi adiante. Refugiou-se na arte – frequentava todos os cursos disponíveis na escola -, começou a desenhar freneticamente, hábito que manteria até os últimos dias – alguns de seus desenhos, em que a anatomia humana era tema frequente, ilustrariam os discos do Nirvana. Por essa época, seu melhor amigo era um colega gay, e por conta da homofobia reinante na escola sofreu bullying (aquela prática cruel e bem própria da adolescência de constantemente assediar alguém moralmente até o limite – e muitas vezes além – do suportável). Como o ódio pelas autoridades e os fortões da escola já estavam bem sedimentados, assim como o sentimento de eterno injustiçado, esta outra forma de discriminação contribui para reforçar ainda mais o espírito rebelde do futuro músico. Kurt desenvolveria um prazer juvenil em debochar dos conservadores – por essa época, saía pelas ruas de sua cidade pixando nos juros a inscrição “Deus é Gay” –, poderosos (lembram da cuspida na câmera da Globo em plena transmissão do show no Hollywood Rock?) e estabelecidos (e a foto na capa da Rolling Stone trajando uma camiseta com os dizeres “Revistas corporativas são um saco”?) que não arrefeceria com a chegada da idade adulta. Em outra passagem de ‘Mais Pesado que o Céu’, Charles Cross relata a fúria que tomou conta de Kurt no dia em que o guitarrista-malabarista Eddie Van Halen humilhou Pat Smear (ex-Germs, que trabalhou com o Nirvana em seu último ano) com termos racistas. Em um show que o Nirvana fazia no Great Western Forum de Los Angeles, o virtuoso líder do Van Halen, bêbado ao extremo, literalmente ficou de joelhos pra pedir a Kurt que lhe desse a chance de subir ao palco para uma canja com a banda. Kurt, que quando menor tivera Eddie como um de seus ídolos, ficou até constrangido com a cena, mas não deu-lhe chance: “Não, você não pode tocar conocso. Não temos guitarristas extras”. Ao que Eddie, magoadíssimo e já surtando, respondeu: “Bem, então me deixe tocar a guitarra do mexicano. O que ele é, ele é mexicano? Ele é negro?”. Ao que Kurt, perplexo mas com a adrenalina já a mil, devolveu: “Na verdade, você pode tocar. Você pode entrar no palco depois do nosso bis. Simplesmente vá até lá e toque sozinho.” E saiu, bufando. (Aqui, cabe um parêntese: grosseria à parte, não faria mesmo o menor sentido dividir o palco com um dos baluartes do metal radiofônico, sexista e cheio de concessões que tomou das paradas e da MTV na década anterior. Kurt sempre levou muito a sério suas origens punk, a ponto de praticamente agir de acordo com uma espécie de “cartilha ideológica”, como boa parte dos músicos alternativos oriundos do universo indie entre final dos 80 e começo dos 90. Quem não lembra de suas acusações ao Pearl Jam, de ser, na essência, “uma banda mainstream e sugar o espírito do verdadeiro rock alternativo”? Desta dicotomia, vem boa parte do conflito interior causado pelo sucesso do Nirvana, que o fez sentir-se um impostor, achando que havia-se transformado exatamente no tipo de popstar milionário que sempre desprezou. Se ‘Smells Like Teen Spirit’ cativou a América e depois o mundo como uma espécie de manifesto da angústia de uma geração de jovens perdidos em 1991 – curiosamente exatos 20 anos depois da ‘What’s Goin’ On’ de Marvin Gaye –, é certo que o fato de vender 30 mil cópias por dia e derrubar a então realeza do pop, Michael Jackson e Madonna, das paradas e virar a nova onda mundial pesou demais na eternamente baixa estima de Kurt desde então).

Kurt era assim: alienado, talvez, como boa parte de sua geração (“X”), mas com uma visão de mundo definida, noções de integridade roqueira inabaláveis e espírito de rebeldia indomável. Não negociava, simplesmente. Às pressões da Geffen Records para que ‘In Utero’, sucessor do arrasa-quarteirão ‘Nevermind’, fosse na mesma linha, digamos, acessível deste, ele respondeu contratando o terrorista dos estúdios Steve Albini, (re)conhecido arquiteto do noise americano e produtor de alguns dos álbuns preferidos de Kurt (‘Surfer Rosa’, dos Pixies, entre eles), que tratou de dar ainda mais peso ao som dos caras, e comunicando aos executivos que não aceitaria qualquer intromissão no processo de criação do disco. As demos iniciais do projeto foram gravadas no Brasil, de onde Kurt saiu profundamente deprimido: por aqui, ele perdeu – ou teve roubadas – alguns rabiscos de letras das canções que entrariam no álbum. É desta aventura brasileira, também, a gravação de ‘You Know You’re Right’, última canção do Nirvana a ser lançada em disco – na coletânea ‘Nirvana’, de 2002.

Mas mesmo mantendo o espírito inconformista, o Kurt do último ano e meio de vida já não tinha mais entusiasmo pra nada: afundou-se na heroína, isolou-se dos amigos (exceto aqueles que compartilhavam seu vício, e, portanto, não iriam entregá-lo a Coutney Love ou à mãe), e foi sucumbindo aos poucos, até finalmente tomar a decisão de acabar com tudo em abril de 1994 – um mês antes, em Roma, já tivera uma overdose, por conta da mistura de Rohypnol e champanhe. Desta, deu pra escapar, pois Courtney tava em cima. Logo após, concordou em internar-se num centro de reabilitação em L. A. – de onde fugiu logo depois pra sua casa em Seattle. Ali, provavelmente no dia 5 – pois Kurt só foi achado três dias depois –, deu-se o trágico desfecho, um tiro de espingarda na cabeça, acompanhado de uma superdose de heroína (pra garantir que não teria volta). O filme ‘Last Days’, de Gus Van Sant, apesar da performance medíocre do ator Michael Pitt e do esquematismo do próprio diretor, especula com certa pertinência o que teriam sido estes últimos dias do último mártir do rock.

É complicado comparar estas duas figuras marcantes do universo por/rock. Estilos musicais completamente distintos, épocas diversas, formações radicalmente opostas – comparar o alcance vocal de Marvin à voz rasgada e por vezes esganiçada de Kurt, o virtuosismo do primeiro aos recursos limitados do segundo, seria não só covardia, mas tolice: são talentos baseados em referências totalmente distantes. Além disso, Marvin viveu quase 20 anos mais que Kurt, deixando obra vasta – e não apenas três discos de carreira, dois ao vivo e uma coletânea de faixas não incluídas nos álbuns, como o líder do Nirvana. Mas uma coisa é certa: se tomarmos por base aquela famosa frase de Orson Welles que diz que “toda obra de arte é boa na medida que exprime a alma de seu criador”, ambos ocupam espaços rigorosamente iguais na história do pop. A almas gigantescas dos dois podem ser sentidas em cada fonograma que deixaram registrados.

3 comentários:

  1. Alô José: Grato por mais uma aula de história musical. Para ser honesto, esse Cobain já foi tarde. Nirvana é uma banda que não me diz absolutamente nada musicalmente falando, bem como o chamado movimento grunge. Bem ao contrário do reverendo do soul, Mr Marvin Gaye, que era o cara e o final trágico deste deve ser sim lamentado reiteradamente, dada a forma estúpida e quiçá "irônica" em que se sucedeu. Abraços e no aguardo do posto da 103,3, como diria o seu Moreiras. Aliás, será que vive esse cidadão?

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  2. Não sei se vive o cidadão, nunca mais o vi. Quem sabe o Torino sabe algo. Quanto ao Kurt, acho que é questão de gosto. O grunge teve a sua importância, embora não tenha sido nada mais do que um revival do rock de garagem, que andava meio fora de moda então - como o tal "new rock" de White Stripes, Strokes, Datsuns, Libertines, Hellacopters e trocentas outras bandas que pintaram no começo desta década em lugares diferentes e, sem um nome melhor pra rotulá-las, ficou esse, bem sem criatividade. Mas o grunge, além de basicamente ter um lugar só como fonte - o noroeste dos EUA, e não só Seattle (Portland, no Oregon, onde mora o Gus "Elefante" Van Sant, tem uma cena fortíssima há muito tempo) - teve ótimas bandas, como o Soundgarden (talvez a mais original de todas, embora, pra meu gosto, os gritos metálicos do Chris Cornell soem meio over), Screaming Trees (e os discos do Mark Lanegan são ainda melhores), Mudhoney (diversão 100%, baita show no finado Porto de Elis no começo da década) e o próprio Nirvana do Kurt, o cara que lavou a alma de uma geração. Mas claro que musicalmente - até disse isso aí no texto - nem dá pra comparar um com outro, seria até covardia: Marvin Gaye tinha uma formação musical muito mais sólida. Mas como rock é pegada e poder de concisão (minimalismo, mesmo, rock progressivo não tem nada a ver), o cara fez muito bem o que se propôs a fazer. E foi o último cara realmente revoltado no rock.
    Sobre a nossa ex-emissora, preciso sentar um dia e fazer só isso, porque é muita história pra contar - acho que vou ter de fazer algo tipo "parte 1" e "parte 2" (e quem sabe "parte 3" ...). Mas qualquer hora sai.
    E tu, índio velho, como vais? Manda um mail aí. Abraço, J.F.

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  3. Mandei e-mail para o amigo, mas a resposta não veio. Será que não recebeste? Farei novo envio hoje...

    Abração

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