sexta-feira, 22 de maio de 2009

Sua majestade gótica e aquele verão em que virou moda se vestir de vampiro

Como é que começou, confesso que não sei, mas foi muito engraçado: de uma hora pra outra, eles apareceram, tal qual uma invasão de ratos saídos da capital em que a população dos mamíferos roedores em relação à humana dá 10 por um. Claro que não tinha só bichos escrotos, mas também alguns (vários) impostores, como sempre, mas chamava a atenção este fenômeno quando cristalizou-se, mesmo aqui no cu do mundo, que o (mau) filósofo popular disse ser “longe demais das capitais”, sobre o qual outro pensador (esse com muito mais talento) cunhou a expressão “estética do frio”, o lugar do qual alguém falou também – com evidente dose de exagero – tratar-se de uma espécie de “Londres tupiniquim” (até o fog característico deles lá tem parecido aqui), é engraçado. Às vésperas de mais um verão escaldante – especificamente o de 1986 – , eles apareceram em todo o seu esplendor e (principalmente) miséria, mesmo que fake.

Os tais "darks" eram criaturas engraçadas na capital da província então: no auge do negócio, por ocasião dos shows do Cure em POA, em 1987 (acho que em março), uma generosa parte da audiência – tudo bem, era minoria, mas uma minoria saliente – estava caracterizada como o Robert Smith: cabelos espicaçados, maquiagem pesada, ropuas escuríssimas (ainda era verão) e ar blasé ... totalmente forçado. Até surfista juramentado, no auge daquele figurino berrante de tons cítricos, apareceu fazendo uma chinfra de europeu entediado. Claro que tinha o pessoal autêntico – o Ocidente já tocava a melhor música pop daquela década e exibia vídeos de shows do Cure, dos Smiths, etc., a Ipanema FM, talvez em seu melhor momento em toda a sua existência, abastecia os fãs de música relevante com o que de melhor havia no mercado nacional e ainda mandava ver aquelas bandas de que todo mundo ouvia falar e nunca saíam por aqui, o Taj Mahal e o Fim de Século viriam logo em seguida, apostando no mesmo repertório. E o pessoal que frequentava esses lugares – e a então “perigosíssima” Osvaldo Aranha (o Lola, em sepecial) – vivia aquilo com intensidade.

Falei da Ipanema FM, mas não dá pra esquecer da sua coirmã carioca, a Fluminense FM (também 94.9), que inovou por ser a primeira grande rádio rock do país, e tem tanto a ver com o refortalecimento da cultura rock no país a partir dos anos 80 – rodava demos de várias bandas brasucas que depois estourariam, clássicos do rock e as indispensáveis novidade da época – que vários discos de bandas conceituadas que eram lançados por aqui vinham com um selinho estampado que era a própria garantia de qualidade: “Aprovado pela Fluminense FM”. Infelizmente a “Maldita”, como era conhecida carinhosamente, começou a murchar no começo dos anos 90 e logo foi a pique – como se sabe, a capital do Rio de Janeiro é tudo menos uma cidade rock, e a coisa não se sustentou. Mas deixou seu legado: o niteroiense Luiz Antonio Mello, diretor/mentor da ‘Flu’ deixou um livro sobre a história da rádio (‘A Onda Maldita’, de 1992) e ainda foi colaborador da Ipanema tempos depois.

Mas tudo isso pra dizer que a "onda dark" começou a valer no país por causa da Maldita: a banda do momentos naqueles tempos era sem dúvida o Cure, que aportu por aqui pela primeira vez através de ‘Concert’, o disco ao vivo de 1984, com o indefectível selinho de recomendação da Flu. Logo, logo, sairia também o arrasa-quarteirão ‘The Head On the Door’, e aí a onda já tinha se espraiado. Por essa época, um outro disco com a participação do esquisito convertido a superstar pop Robert Smith saiu também com o selinho, ‘Hyaena’, de Siouxsie & The Banshees, os reais precursores do que se convencionou chamar de "goth rock". Foi aí então que conheci uma de minhas bandas do coração, uma das entidades que mais amei (amo) na vida – Neném diz que as listas de bandas/filmes preferidos mudam toda a semana, mas garanto que não é bem assim, os Banshees a mais alguns poucos (Velvet, Echo, Sonic Youth, Beach Boys fase lisérgica, Who, Roxy Music) sempre estiveram lá. E lá se vão quase 25 anos ...

Há quem os ache uma banda meio datada, identificada demais com o período – final dos 70’s até meados dos 80’s. Não concordo: sendo assim, o synth pop, o psychobilly dos Cramps, o indie rock americano, o hip-hop da old school, o ska do Madness e do Specials, o pop de letras cerebrais e levada punk de Elvis Costello, o lirismo desesperançado dos Smiths, o niilismo do Joy Division, o som robótico/nerd do Devo ... e mais uma cacetada de bandas que influenciou e influencia um sem número de artistas da atualidade teriam de ser reconsiderados também (e toda essa onda de revival interminável de anos oitenta tá aí pra não deixar mentir). Os Banshees talvez tenham influenciado uma porrada de bandas chatas da atualidade, mas aí o problema não é deles: quantos grupos de metal farofa com vocalistas estridentes que soltam ganidos agudos insuportáveis foram influenciados por Led Zeppelin e Deep Purple? Quantas bandas pop de melodias ensolaradas/açucaradas rezam pela cartilha dos Beach Boys, do Big Star e dos Beatles? E quanta tranqueira não foi influenciada por Pink Floyd, King Crimson e até o incensado (com justiça) krautrock? Os Banshees são, na minha modestíssima opinião, uma das bandas mais originais da história: conseguiram criar um rótulo, uma categoria, o que é difícil e criar um tipo de música muito mais variado que seus pares de "cold wave" (Joy, Comsat Angels, Echo, Cure, Magazine) a partir de elementos manjados (Velvet, Stooges, Bowie, Roxy Music, o krautrock) sem deixar de ser Siouxsie & The Banshees. Adicionavam elementos étnicos (sim, a famigerada "world music"), também – o que Robert Smith faria no Cure logo depois –, deixando a coisa toda com um caráter (ainda mais) exótico.

O primeiro show, em setembro de 1976, tocando no Punk Festival, no lendário 100 Club londrino, já mostrava a que viera a banda: foram incessantemente vaiados após tocarem uma canção, chamada ‘The Lord’s Prayer’, que era uma barulheira infernal e durava nada menos do que 20 minutos. Não que tenham se importado muito com a recepção, digamos, pouco calorosa da platéia: Siouxsie era membro do Contingente do Bromley, um pessoal boca braba que seguia os Sex Pistols por onde eles andassem – na histórica entrevista de John Lydon e cia. na BBC, que causou escândalo pelo comportamento selvagem do grupo (pela primeira vez se falava palavrões na emissora), Susy estava lá. E também Sid Vicious, que ainda não era um Pistol, mas um Banshee, onde exercia a função de baterista.

Estão sendo relançados alguns discos do grupo – só lá fora, óbvio -, remasterizados e com faixas-bônus. Precisamente quatro – justamente o quarto, o quinto, o sexto e o sétimo –, todos bacanas. Vamos pela sequência cronológica:


A KISS IN THE DREAMHOUSE (1982)
Sem dúvida, o melhor do pacote, é o derradeiro álbum com a melhor formação que os Banshees tiveram: além da (grande) cantora Siouxsie Sioux, performer com absoluto domínio do palco, personagem peculiaríssima, seu marido Budgie (um dos bateristas mais originais da história do rock, fazendo uso largo de tambores os mais diversos, dos talking drums africanos a surdos e bumbos que ele usava como se fossem tontons) e o baxista Severin, cujo instrumento, de som agudíssimo, muitas vezes assumia a linha de frente (mais ou menos como Hooky no New Order), o verdadeiro arauto do tom agônico no som da banda, ainda tinha o guitarrista John McGeouh, que passara pelo Magazine e depois viria ao Brasil com o P.I.L. Vários clássicos: a tensa ‘Cascade’, a bela ‘Melt!’, ‘Painted Bird’, ‘Slowdive’, ... todas highlights das apresentações da banda. ‘Cocoon’ tem uma queda para o jazz, ‘Obsession’, com seus murmúrios e sussurros, parece trilha de pesadelo ... O disco não teve a mesma acolhida pela crítica que os clássicos anteriores, especialmente o agressivo álbum de estreia, ‘The Scream’ (1978, relançado em edição de luxo uns três anos trás), o lisérgico ‘Kaleidoscope’ (1980) e o tribal ‘Juju’ (1981). Azar da crítica.


NOCTURNE (1983)
O álbum ao vivo, que conta com Robert Smith na guitarra, aposta no repertório clássico dos quatro primeiros álbuns. É bom, se sombra de dúvida melhor que o CD que registra os shows da volta, em 1997, embora esteja longe de poder ser considerado um daqueles registros clássicos como ‘Live at Leeds’, do Who, ou o ‘Rust Never Sleeps’, de Neil Young. Vale-se muito das imagens, aliás: o vídeo da apresentação, no Royal Albert Hall começa com a câmera passeando pela mítica casa de apresentações londrina, enquanto ouvem-se os acordes de ‘Pássaros de Fogo’, de Stravinsky, até descer na platéia, onde vemos aquela multidão de preto, formada por clones de Siouxsie, Bob Smith e colegas, moicanos, etc., terminando por focar no palco, onde vemos os vultos do quarteto, de longe, onde Budgie dá o start com as baquetas e eles mandam ‘Israel’. Mais mítico, impossível. O vídeo de ‘Nocturne’, que causava comoção onde era exibido nos anos 80 (lembro do Taj Mahal e também do Ocidente, se a memória não trai), mas foi lançado em DVD não faz muito por aqui, não sendo difícil de encontrar, pelo menos nas locadoras. Tem duas covers legais do Álbum Branco dos Beatles, a releitura muito peculiar de ‘Helter Skelter’ e uma palatável ‘Dear Prudence’, o que rendeu críticas de punks de carteirinha da época, Joe Strummer, do Clash. Azar o deles.


HYAENA (1984)
Foi, na verdade, o cartão de visitas da banda no Brasil, lançado por aqui mais ou menos um ano depois de ser parido. O disco de capinha multi-colorida é mais melódico, menos tenso e incisivo que os anteriores, mas tem uma estranheza que chama a atenção. Arranjos de cordas emolduram a faixa de abertura, ‘Dazzle’, ‘Beladonna’ e ‘Swimming Horses’ são melodias altamente assobiáveis, e ainda tem o registro em estúdio de ‘Dear Prudence’, de Lennon e McCartney. Mas ‘We Hunger’ e ‘Bring Me The Head of The Preacher Man’ não deixam dúvidas de que em se tratando dos Banshees, a calma é só aparente. Bob Smith saiu da banda logo depois deste que é o registro mais lisérgico do grupo - a onda neo-psicodélica tava pegando na época - pra cuidar só da sua banda principal, que já começava a ver seu público crescer. Azar dos Banshees.

TINDERBOX (1986)
É conhecido por ser o disco que contém um dos singles de maior sucesso na carreira da banda, ‘Cities in the Dust’, cuja letra fala da erupção do vulcão Vesúvio, que, em 1979, depois de 35 anos de inatividade, resolveu dar o ar de sua graça, deixando não só Nápoles, mas todo o sul da Europa coberta por cinzas. Mas tem outras grandes músicas: a assustadora ‘Candyman’, que abre o disco, as belas ‘Cannons’ e ‘The Sweetest Chill’, ... Marca a estreia do ótimo guitarrista John Carruthers, ex-Clock DVA, que entrou como uma luvana banda Foi na turnê deste disco que a banda veio ao Brasil pela primeira vez – mas, claro, passou longe de Porto Alegre. Azar o nosso.

Na sequência, lançariam um irregular disco de covers, ‘Through Looking Glass’ (1987), cujo repertório vai de The Band a Krafwerk, de Roxy Music a Iggy Pop (‘The Passenger’ virou dez anos depois o hit que não havia sido no clássico ‘Lust For Life’), o ótimo ‘Peepshow’ (1988), das excelentes ‘Peeak-a-Boo’ e ‘The Last Beat of My Heart’, e ‘Superstition’ (1991), que já flertava com a dance music e a onda eletrônica, como no hit ‘Kiss Them For Me’. ‘The Rapture’ (1995), com produção de John Cale e uma calmaria até então inédita nas gravações da banda, já demonstrava o cansaço da banda, que pendurou as chuteiras no ano seguinte, justamente quando completava 20 anos de estrada – na ocasião, saiu em turnê com os Sex Pistols, que voltavam pra polêmica ‘Filthy Lucre Tour’. Voltaram para um novo giro sete anos depois, que rendeu o CD/DVD ‘Seven Year Itch’, e separaram-se novamente. Especulou-se ano passado que poderiam tocar por aqui, mas a coisa não se concretizou; nem poderia: um show da banda completa seria completamente inviável no momento, uma vez que Siousxie hoje trabalha completamente solo (o álbum ‘Mantaray’, de 2007, foi lançado no mercado nacional), tendo inclusive separado-se de Budgie. Tocaram no Brasil, isso sim, em 1986, como referido ali em cima (três shows em São Paulo, um em Santos e outro no Rio) e em 1995, divulgando ‘The Rapture’ (dois em Sampa, um no Rio). Da primeira vez, quase chorei quando soube que passariam pelo Brasil mas não tocariam em Porto Alegre. Com o tempo, me acostumei com a realidade de viver em uma cidade periférica.


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