E estremeci, certo de que ela agora via como nunca antes; e impelida pela necessidade imediata de defender-me, apelei apaixonadamente para o seu testemunho:
- Ela está ali, infeliz criatura! Ali, ali, ali, e você sabe tão bem como eu!
Eu dissera pouco tempo antes a Mrs. Grose que, nesses momentos, Flora já não era uma criança, mas uma mulher velha, muito velha, e nada para confirmar de maneira mais evidente essa declaração do que o modo pelo qual, por toda resposta, ela simplesmente me apresentou, sem a menor concessão ou admissão, uma aitude de censura cada vez mais acentuada que, de súbito, se fixou inteiramente.
Nessa altura eu estava – se é que posso reunir os traços esparsos dessa cena – ainda mais horrorizada por aquilo que posso chamar com justeza de ‘seu jogo’ do que por todo o resto, se bem que, simultaneamente, eu tivesse percebido que agora Mrs. Grose estava indisfarçavelmente contra mim. Em todo caso, no momento, tudo se dissipou, para só me deixar sensível ao rosto congestionado e ao ruidoso protesto da minha velha companheira, onde explodia a sua violenta desaprovação:
- É possível ação mais horrorosa, miss? Onde diacho a senhora está vendo a mínima coisa? "
(A VOLTA DO PARAFUSO, Henry James. Publicada em 1898, essa novela curta é daquelas obras em que as expressões que se usam para qualificar-lhe o gênero – "literatura fantástica" e "romance gótico" são as mais manjadas –, são insuficientes. As interpretações à obra, uma das mais conhecidas de James – também autor de ‘Retrato de Uma Senhora’, ‘Daisy Miller’, ‘Um Incidente Internacional’, ‘Washington Square’, ‘A Taça de Ouro’ –, são as mais variadas. A história, contada em primeira pessoa por um narrador desconhecido que lê um manuscrito de uma governanta já falecida, refaz a convivência dessa preceptora com duas crianças órfãs, Miles e Flora, por quem o tio, um homem rico porém durão, sente-se responsável, mas com quem não quer maior contato. Assim, a governanta obtém carta branca para educar a dupla, que vive em uma grande casa de campo. Tudo vai bem até que Miles é expulso do colégio – o garoto não toca no assunto, mas ela desconfia que há algo muito sério por trás. Pouco depois, duas estranhas criaturas passam a frequentar os jardins da casa, aparentemente sem que ninguém perceba a não ser a governanta, e logo ela vai saber que, antes de trabalhar ali, Miss Jessel, sua antecessora, e o amante, Peter Quint, morreram sob circunstâncias misteriosas. Ela continua a ter visões do casal, enquanto todos os outros ocupantes da casa ignoram sua suposta presença, e então passa a desconfiar que as crianças lhe mentem quando dizem que não vêem nada. Há quem faça uma leitura freudiana da trama (os fantasmas estão só na cabeça da protagonista); há quem veja implicações sócio-políticas (seria uma metáfora ao imperialismo britânico, já que na introdução há referências à Índia; ao opressor sistema patriarcal – as visões da governanta seriam uma reação maníaca à maneira com que foi criada pelo pai; à repressora era vitoriana – o romance foi publicado no finalzinho do período: a preceptora começa a perturbar-se à medida que toma conhecimento do relacionamento picante e sem amarras do casal de falecidos); e há também quem simplesmente veja a história como um tradicional conto de fantasmas, uma vez que, além de grande apreciador do gênero, nos diários de James há apenas uma menção à intenção inicial de trabalhar ficcionalmente um "causo" que ouviu certa vez do arcebispo de Canterbury. O certo é que ‘A Volta do Parafuso’ é daquelas histórias envolventes, que prendem da primeira à ultima página. Teve várias versões para a TV e o cinema – a mais conhecida, o ótimo ‘Os Inocentes’, de Jack Clayton, de 1961, com a soberba Deborrah Kerr no papel principal – e é referência pop até hoje – em uma cena de ‘Lost’ em que a escotilha está prestes a explodir porque os números não foram digitados no sistema a tempo, o escocês perturbado Desmond diz para que alguém aperte, um botão de segurança escondido atrás de uma prateleira. Em que lugar? "Ali, bem atrás de ‘A Volta do Parafuso’". O americano de nascimento e inglês de adoção Henry James (1843-1916), um dos nomes da literatura do século XIX – não só em língua inglesa – era de uma família de notáveis: seu irmão, o filósofo William James, é o pai da psicologia americana; a irmã, Alice, notabilizou-se pelos seus diários, publicados postumamente, cheios de argutos comentários sobre a sociedade inglesa de sua época, e acabou virando uma espécie de ícone feminista; e o pai, Henry James Sr., foi conhecido teólogo.)

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