sexta-feira, 29 de maio de 2009

Eu e Meu Brinquedo (10) – Jean Renoir


"Eu certamente hoje não estaria realizando ‘Toni’, se os acasos da vida não me tivessem levado ao sul da França onde meu velho amigo M. cumpre as funções de comissário de polícia.

Sendo um homem fino e culto que gosta de escrever e contar histórias, ele me fez um dia um relato de um drama horrível, de que fora testemunha e cujo epílogo se pode reconstituir pelos recortes um pouco amarelados dos jornais da época.

O talento do narrador, a exatidão selvagem de sua evocação, me deram logo vontade de tirar um filme dauela notícia sem impotância. Fiz imediatamente uma primeira sinopse que submeti à aprovação de meu prerstativo amigo.

Tive a boa sorte de interessá-lo suficientemente para incitá-lo a transcrever sua vez, sob a forma de um relato romanceado que ele pretende publicar um dia, a trágica aventura de Toni.

‘Toni’ será então uma simples transposição da realidade. Na base de uma obra desse gênero, estão a observação e a descrição de personagens tirados diretamente da vida. Pensando bem, não existe entre uma relização dessas e as inspiradas pela literatura, como ‘Madame Bovary’, por exemplo, nenhuma diferença fundamental.

Eu ficaria, contudo, tentado a pensar que, no segundo caso, a realidade absorvida e digerida uma primeira vez por um homemde gênio já não é mais, para o autor de filmes, uma matéria bruta, e lhe chega num estado de transformação adiantado o suficiente para simplificar sua tarefa.

Existe, é verdade, como contrapartida a tal vantagem, o piedoso receio de trair as próprias fontes de inspiração, e o largo flanco que se expõe à malignidade pública, fornecendo-lhe a oportunidade de um paralelo desagradável entre uma grande sombra unanimemente respeitada e um contemporâneo minúsculo que ela tem tantas razões, erradas ou certas, para criticar.

Por esse motivos, considero-me particularmente feliz no que se refere a meu novo roteiro por ter encontrado uma realidade tão despojada e de tal modo estilizada que me fornece, sem correr o risco de comparações desagradáveis, personagens talhados na própria matéria que um grande escritor como Flaubert teria apreciado. ..."

(Trecho de ‘Toni, Uma simples Transposição da Realidade’, publicado originalmente em Les Cahiers du film nº 5, em novembro de 1934, e L’Effort cinématographique nº 20, em 1º de novembro de 1934.)

...

"De vez em quando, timidademente, a indústria cinematográfica mostra um film em ‘cores naturais’. Fala-se um pouco a respsito e, nos salões, as pessoas de bom gosto estão de acordo em declarar que aquele filme é perfeitamente infecto.

Daqui a um ano, essas mesmas pessoas já terão visto um pouco mais de filmes em cores e descobrirão certas qualidades neles. Algumas enhoras (as mulheres da elite não estão sempre ma vanguarda do progresso?) afirmarão que ‘não é tão ruim assim’. Depois, um pouco mais tarde, já nem se falará mais a respsito. Todos os filmes serão em cores e, quando se projetar um filme preto e branco, as pessoas se olharão entre si espantadas e com um pouco de desprezo, como quando lhes mostram um vestido ‘1900’ ... ‘Como, era isso que nos serviam todos os sábados? Envelheceu incrivelmente.’

Será que essa transformação da opinião pública se deverá ao aperfeiçoamento da técnica? Sim, evidentemente, mas será principalmente o resultado do espírito de carneiro do público. O homem se acostuma com tudo e, quando adora um novo ídolo, trata rapidamente de queimar os deuses antigos.

Em nossa profissão, podemos todos constatar atualmente esse fenômeno nos desenhos animados. Quantas exclamações de horror não ouvimos nos cinemas quando das primeira projeções das ‘Silly Symphonies’ em cores. E agora, os mesmo cinemas, com os mesmos espectadores, protestam quando lhes mostram um desenho animado preto e branco. A técnica talvez tenha melhorado pelo fato de que os autores têm mais experiência, mas o sistema fundamental permanece absolutamente o mesmo. Trata-se do velho ‘technicolor americano’, que tanto fez rir antigamente ‘as pessoas de bom gosto’.

A mesma coisa aconteceu com a chegada do som.Os primeiros filmes falados provocavam ranger de dentes. As vozes pareciam nasaladas e os ruídos ambientes de uma forte vulgaridade. Agora, evidentemente, os sistemas evoluíram um pouco, mas, considerando que em muitas salas projetam-se filmes em cornetas horrorosas, a voz do falado chega a nós muitas vezes tão grosseira quanto o era no início. Mas todo mundo acha isso muito bom porque todo mundo está acostumado.

Moral: não se deve ser inivador ou, então, deve-se renunciar aos bens materiais e se converter a um asceticismo obrigatório. O industrial hábil deve esperar, em nossa época, que o caminho seja aberto por fogosos imprudentes. Depois, recolhendo os benefícios da experiência deles, lança-se prudentemente. E só entãos e faz dinehiro.

Estou-me refugiando, é claro, no campo do cinematógrafo, que é campo de rotina e de ignorância. De passagem, manifesto uma dúvida quanto à eficáciada intervenção do Estado nos assuntos de minha profissão. Dentro desse capítulo, acabam de me contar uma bem edificante.Um parlamentar encarregado de apresentar um relatório a uma Comissão que cuida de cinema, veio a ver um de meus amigos, e, afobado, perguntou-lhe como se documentar sobre o preço do metro do filme. Meu amigo espantou o parlamentar ao lhe dar o simples conselho de entrar na Kodak e pedir um catálogo.

Na minha opinião, a profissão que nos dá todos os dias exemplos tangíveis de audácia é a indústria de automóveis. Sem dúvida, porque ela vive sob a ditadura de alguns realizadores de talento que não procuram esse ‘gosto do público’, que só alguns iluminados do cinema e do teatro têm a pretensão de conhecer como seu Padre-nosso – se posso me exprimir assim – mas que oferecem de maneira inteligente e comercial uma mercadoria que o público deseja e compra.

A prova disso é a apresentação recente no mercado dos últimos modelos de carro. No cinema, não estamos nesse ponto e rogamos a Deus para que ele, arrancando-nos aos artistas e intelectuais, nos ponha finalmente na dependência de algum industrial sério.


(‘A Cor no Cinema’, em La Revue des Sports et du Monde nº 29, 1º de janeiro de 1936)

...

Pergunta: "Que dificuldades específicas causaram ao senhor as interpretações das reações do ‘público’ pelos distribuidores, produtores, censores etc. (como no caso de Flaherty com ‘Elephant Boy’, Vigo com ‘Atalante’ e ‘Zéro de Conduíte’, Eisenstein com ‘Ivan o Terrível’, e Rosselini com ‘O Milagre’)?"

Renoir: "O fato de terem achado que o público americano precisava de uma Ingrid Bergman sentimentas e romântica prejudicou muito a versão americana de meu filme ‘As Estranhas Coisas de Paris’. Esse filme é uma farsa satírica, nada mais. A versão francesa, fiel a esse gênero peculiar, foi muito bem recebida pelo público de vários países europeus. Nos Estados unidos, mudaram o títuloe trocaram por outro começo e por outro fim os da versão original. Suponho que tenham havido outras mudanças, mas não posso julgar pessoalmente a extensão do massacre, pois recusei-me a ver esse filme que não reconheço mais como meu. Atribuo essa mutilação às exigências publicitárias e promocionais do distribuidor americano. Eles tinham vergonha de apresentar Ingrid Bergman no que consideravam uma comédia de ‘baixo nível’. O título dessa versão americana é ‘Paris Does Strange Things’ (NOTA: o título original francês é ‘Eléna et les hommes’, literalmente ‘Elena e os Homens’.)

Pergunta: "Quais são, em sua opinião, os progressos mais interessates do cinema nestes últimos anos?"

Renoir: "Em Hollywood, a importância cada vez maior dos produtores independentes – tanto dentro quanto fora dos grandes estúdios."

Pergunta: "E quais são os piores?"

Renoir: "Todos os requintes técnicos me desanimam. A perfeição da fotografia, as grandes telas, o som estéreo, tudo isso torna possível uma reprodução estéril da natureza; e essa produção me entedia. O que me interessa é a interpretação que um artista faz da vida. A personalidade do artista me interessa mais do que a cópia de um objeto."

Pergunta: "Qual é o filme, ou os filmes, que o senhor faria se estivesse liberado de todas as limitações (censura, investimentos etc.) que não são do campo da arte?"

Renoir: "O que me apaixona é levar à tela certos assuntos, mas esses projetos claro que levam em conta limitações não artísticas a que você está se referindo. Pelo meu lado, as exigências comerciais e os diversos códigos de censura jogam todos, de um modo ou de outro, a meu favor, porque me forçam a olhar as coisas de maneira mais sutil. E não sou o úncio nessa situação, a história da arte está cheia desses progressos artísticos que ocorreram sob as piores tiranias. Se eu fosse completamente livre, faria provavelmente os mesmos filmes que os que dirijo hoje."

(‘O Diretor e o Público’, em ‘Film: Book 1’, editado por Robert Hughes, 1959)

(Em ‘O Passado Vivo’, reunião de escritos de JEAN RENOIR, o grande mestre do realismo poético francês, discorre sobre seu trabalho e o de colegas como Eric Von Stroheim, Jacques Becker, Rosselini, Lubitsch, John Ford, Pagnol, Welles – que, por sua vez, publicou um famoso texto dedicado a ele, e com título mais que lisonjeiro, ‘Jean Renoir, the greatest of all directors’, no Los Angeles Times quando de sua morte –, além de artigos sobre o crítico André Bazin, o dramaturgo Clifford Odets, o escritor George Simenon, uma curiosa auto-entrevista e reflexões acerca da indústria, do cinema e da arte em geral. Nascido em 15 de setembro de 1894 em Montmartre, Paris, é um daqueles casos raríssimos de gênio filho de gênio: seu talento, como um dos principais diretores de cinema de todos os tempos, autor de obras fundamentais da sétima arte, como ‘A Grande Ilusão’ (1937) e ‘A Regra do Jogo’ (1939), sempre bem colocados nas listas de filmes mais importantes de todos os tempos – ‘A Regra ..’, homenageado por Altman e ‘Assassinato em Gosford Park’, dificilmente baixa da terceira posição – não foi ofuscado pela sombra do pai, o mestre impressionista Pierre-Auguste Renoir. Com o dinheiro da herança deixada pelo pai, inclusive, foi que montou sua companhia, e estreou na direção em 1924 com ‘A Filha da Água’. A influência de Renoir no cinema moderno é profunda: ao mesmo tempo em que demonstra um domínio narrativo absurdo, e mesmo uma capacidade ímpar de renovar a linguagem – ‘A Regra da Jogo’ é um prodígio só comparável, talvez, a ‘Cidadão Kane’ –, seus filmes são verdadeiros painéis da sociedade francesa de seu tempo. Tornou-se, assim, claro, referência marcante da nouvelle vague: François Truffaut, o mais fanático de seus admiradores, dizia que aprendeu com Hitchcock a contar uma história e com Renoir a falar de sentimentos. Lançado no pela Ed. Nova Fronteira em 1991, dois anos após a edição francesa, ‘O Passado Vivo’ pintou por aqui um ano depois de ‘Escritos sobre Cinema 1926-1971’, publicado pela mesma editora. Ambos estão esgotados. De Renoir, nas locadoras é possível encontrar, além de ‘A Grande Ilusão’ e ‘A Regra do Jogo’, ‘Nana’ (1926), a versão de ‘Madame Bovary’ (1933), ‘A Marselhesa’ (1938), ‘A Mulher Desejada’ (1947), 'O Rio Sagrado’ (1951), ‘A Carruagem de Ouro’ (1953) – que daria nome à produtora de Truffaut, Les Films Du Carrosse –, ‘French Can Can’ (1954), o controverso ‘Esta Terra é Minha’ (1956). ‘A Filha da Água’ foi recentemente lançado pela Cult Filmes, juntamente com o belíssimo‘Um Dia no Campo’ (1946), que mesmo inacabado – Renoir rodou-o dez anos antes e pretendia incluir cenas do que acontecia entre os dois feriados em que se desenrolam os acontecimentos, mas simplesmente desistiu, alegando bloqueio criativo – ainda permanece como um de seus filmes mais vivos. Lamentavelmente, muitos de seus clássicos – ‘A Cadela’, ‘Boudou Salvo das Águas’ (os dois com Michel Simon, em interpretações não menos que espantosas), ‘Toni’, ‘O Crime do Sr. Lange’, ‘A Besta Humana’ - ainda permanecem inéditos em DVD no Brasil. Jean deu aulas de cinema na Universidade da Califórnia, onde morou por muito tempo. Morreu em 12 de fevereiro de 1979 em Hollywood. )

Jean pintado pelo pai, Auguste: caso raríssimo de gênio filho de gênio. A obra justamente ilustra a capa da edição brasileira de 'O Passado Vivo'

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