sexta-feira, 22 de maio de 2009

Assim Foi Escrito (6) – O Espião que Saiu do Frio (John Le Carré)

Leamas não era dado a reflexões e pouco tinha de filosófico. Sabia que estava acabado, mas isso constituía um fato da vida, que carregaria dali em diante como outros homens suportam a prisão ou o câncer. E comonada poderia preencher o abismo aberto entre o passado e o presente, encarava o seu declínio da mesma maneira que, um dia, enfrentaria, provavelmente, a morte: com ressentimento cínico e a coragem de um solitário. Durara mais do que muitos; agora estava vencido. Dizem que um cão vive enquanto tem dentes; metaforicamente, tinham-lhe arrancado os dentes e fôra Mundt que os arrancara.

Dez anos antes, poderia ter enveredado por outro caminho, pois no anônimo edifício governamental de Cambridge Circus não faltavam serviços burocráticos que pudesse desempenhar até quando Deus quisesse, mas Leamas não era assim. Pedir-lhe que trocasse a vida ativa pela teorização tendenciosa e pela clandestina bisbilhotice de Whitehall equivaleria a pedir a um jóquei que virasse bookmaker. Por isso, permanecera em Berlim, apesar de saber que o Departamento de Pessoal marcara a sua ficha para ser revista no fim de cada ano. Obstinado, voluntarioso, desdenhara as instruções e ficara à espera de alguma coisa. A espionagem tem uma lei moral – o que importa são os resultados obtidos – a que até a sofisticada Whitehall se submete; e Leamas obtivera resultados ... até aparecer Mundt.

Era surpreendente a rapidez com que compreendera que Mundt seria decisivo em sua carreira.

Hans-Dieter Mundt nascera quarenta e dois anos antes, em Leipzig ... Leamasconhecia o dossiê do rival, a fotografia colada no interior da capa, o rosto inexpressivo e duro sob o cabelo muito louro, e sabia de cor a história de sua ascenção ao poder, como segundo homem da Abteilung e chefe efetivo das operações. Até no próprio departamento o odiavam. Leamas estava a par disso pelas declarações dos desertores e por intermédio de Riemeck que, como membro do Presidium do S.E.D., participava com Mundt de comissões de segurança e o temia. E com razão, afinal, pois Mundt matara-o.”

...

“Um homem que representa um papel, não para os outros, mas sozinho, expõe-se a perigos psicológicos evidentes. Em si mesma, a mentira não é particularmente difícil; trata-se de uma questão de prática, de perícia profissional, de uma habilidade, em suma que muitos de nós podemos adquirir. Mas enquanto um vigarista, um ator ou um jogador profissional podem voltar da ribalta às fileiras de seus admiradores, o agente secreto não goza dessa possibilidade. Para ele, o embuste é, antes de tudo, uma estratégia de autodefesa. Tem de proteger-se do interior e do exterior e contra os impulsos mais naturais. Mesmo que ganhe uma fortuna, o seu papel pode impedi-lo de comprar nem que seja uma lâmina de barbear; mesmo que seja erudito, pode-se ver obrigado a gaguejar apenas banalidades; mesmo que seja marido e pai afetuoso, terá de ocultar a sua vida àqueles em quem, naturalmente, devia confiar.

Consciente das espantosas tentações que assaltam um homem permanentemente isolado na sua mentira, Leamas valia-se do procedimento que melhor o defendia, e, mesmo quando estava só, constrangia-se a viver com a personalidade que assumira. Diz-se que, no seu leito de morte, Balzac perguntava, ansiosamente, pela saúde e pela prosperidade dos personagens que criara; do mesmo modo, Leamas, sem renunciar ao poder de invenção, identificava-se com o que inventava. As características que evidenciava perante Fiedler – a incerteza inquieta, a arrogância protetora que disfarçava a vergonha – não eram imitações, mas, sim, prolongamentos de qualidades que, de fato possuía. O mesmo acontecia com o ligeiro arrastar dos pés, com o ar de descuido pessoa, a indiferença pela comida e uma tendência crescente a beber e fumar demais. Sozinho, conservava-se fiel a esses hábitos, exagerava-os até um pouco, e protestava, entre dentes, contra as iniquidades do seu serviço.

Só muito raramente, como ao deitar-se naquela noite, se concedia ao luxo perigoso de reconhecer a grande mentira que vivia.


(‘O Espião que Veio do Frio’, de JOHN LE CARRÉ. O clássico romance de espionagem ambientado nos tensos tempos da guerra fria tem como principal personagem o então decadente espião inglês Alec Leamas, cuja equipe de agentes foi dizimada um a um pelo rival Mundt, espião alemão. Leamas, por baixo com o chefe Control por conta do desmantelamento do escritório britânico em Berlim – apelidado de “O Circo” – recebe dele a missão de continuar na gelada Alemanha Oriretal e dar o contra-veneno em Mundt: passar informações falsas pra que o alemão seja considerado um agente duplo. Publicado pela primeira vez em 1963, ‘O Espião que Veio do Frio’, que é parte de uma trilogia iniciada com ‘A Murder of Quality’ e finalizada com ‘The Looking-Glass War’, obteve imediata resposta de público e crítica, recebendo elogios rasgados de ninguém menos que Graham Greene, o papa da matéria: “é a melhor história de espionagem que já li”. Greene conhecia o assunto, foi espião britânico durante a Segunda Guerra. Le Carré – ou David Cornell, seu verdadeiro nome –, também: este largou o serviço diplomático inglês logo após o sucesso de ‘O Espião ...’ pra dedicar-se com exclusividade à literatura. Completa 78 anos em outubro e seu último livro é ‘A Most Wanted Man’, do ano passado, ainda não lançado por aqui. Entre seus trabalhos mais conhecidos, todos editados pela Record no Brasil, estão ‘O Jardineiro Fiel’, ‘A Casa da Rússia’, ‘O Gerente Noturno’, ‘O Alfaiate do Panamá’, ‘A Garota do Tambor’, ‘O Peregrino Secreto’ – vários deles transpostos para as telas. A versão cinematográfica de ‘O Espião que Veio do Frio’ foi feita por Hollywood dois anos depois, com direção de Martin Ritt – ‘Ver-te-ei no Inferno’, ‘O Indomável’, ‘Hombre’ – e Sir Richard Burton no papel de Leamas, além de Claire Bloom e Oskar Werner no elenco.)


O veterano Le Carré: ele conhece como ninguém o mundo de intrigas, traições e identidades cambiáveis da espionagem internacional

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