terça-feira, 12 de maio de 2009

Siglas que definem uma vida: o CBGB

Tinha 24 anos e alguma coisa quando pisei lá. Tava me preparando pra voltar ao Brasil, de onde tinha partido no dia 26 de fevereiro daquele ano - dois dias antes de explodir uma bomba na garagem do World Trade Center, justo no dia em que cheguei em L.A. -, já havia vendido o carro (um Toyota Corolla 1980 com aspecto lamentável, que me custou 800 dólares, mais as taxas pra regularizá-lo), empacotado as coisas e deixados-as divididas em três lugares: com meu amigo – e agora ex-roomate – Alemão, minha prima residente lá havia três anos, e num storage (a bateria que tinha comprado, mais umas bugugangas). Era dezembro de 1993 (ou janeiro de 94?), tinha passado pela quarta vez por San Francisco – onde quase chorei ao mirar a Golden Gate, numa noite de domingo, pela última vez – e, antes da ida a Portland (a do Oregon, famosa pela cena musical riquíssima e por ser o lar de Gus Van Sant), onde encontraria meus amigos Boca e Dado, pegar as tralhas em L.A. e rumar de volta pro Brasa, fui passar uns dias na big apple, que era onde eu queria morar desde o início – sonho com isso até hoje. Em lá chegando, a primeira coisa que fiz depois de me instalar no New York Hostel – o imenso casarão na Broadway com a 103st, próximo ao Harlem –, foi tentar descolar um Village Voice pra saber dos shows, minha primeira e quase única preocupação em todo o tempo (10 meses e meio) de América. Tinha shows de Astrud Gilberto no Sounds of Brazil e Herbie Hancock no Blue Note na mesma noite, tinha Naná Vasconcellos outro dia, Pretenders acústico em outro, mais o James Blood Ulmer, aquele guitarrista cult que junta uma cacetada de referências, ... mas um em especial chamou minha atenção de cara: dizia lá "BAND OF SUSANS (uma banda da qual tinha ouvido falar super bem, mas ainda não conhecia) com abertura de 360’S (quem?) e VODKA (hã?)". Beleza, vou conhecer a tal banda das Susans, que tivera discos muito elogiados (‘Love Agenda’, por exemplo) nas seções de importados das revistas nacionais e de onde tinha saído o Page Hamilton, do Helmet, uma banda que eu curtia muito então. Mas na real não eram as bandas que importavam, mas o local. Tava lá impresso no anuúncio do show aquela sigla mágica, que povoava meu imaginário havia uns dez anos, mais ou menos, e uma das grandes razões pra empreitada na América: C.B.G.B. Teria ido lá até se fosse um show da Ivete Sangalo, do Jota Quest, dos Engenheiros do Havaí, Claus e Vanessa, Chimarruts ou qualquer bosta dessas aí – lamentando profundamente que essa espécie de gente tocasse lá, é óbvio, o que, claro, jamais aconteceria, de jeito algum – só pra pisar no lugar.

O CBGB & OMFUG, seu nome completo (‘Country, Bluegrass, Blues and Other Music for Uplifting Gormandizers’, ou ‘Country, Bluegrass e outras músicas para elevar o espítiro de glutões’) foi fundado por Hilly Kristal – que explicava que a expressão "glutões" do título do seu clube não se referia exatamente a comilões, mas a "vorazes consumidores de música" – em dezembro de 1973. A idéia original era mesmo apresentar shows de música popular americana de raiz (country, bluegrass, ...) e leitura de poesia, bem na tradição dos cafés boêmios do Village novaiorquino por onde passaram os beats, Dylan, etc. nas duas décadas anteriores. Porém, um belo dia, dois frequentadores, Bill Page e Rusty McKenna, foram ter com Kristal pra que ele passasse a agendar show de novos artistas, uma vez que o Mercer Arts Center, tradicional reduto underground, havia fechado as portas pouco antes das abertura do CB’s – o Suicide e o transexual Wayne/Jane County, por exemplo, tocavam lá. Com o tempo, mais artistas da então chamada "street music" pintariam na casa do Bowery: o Television adonou-se das noites de domingo, sendo a primeira banda regular do estabelecimento, o Blondie (primeiro sob o nome de The Stillettoes, depois Angel & The Snake), os Talking Heads, Johnny Thunders, ex-New York Dolls, e sua nova banda, os Heartbreakers, e um quarteto de calças rasgadas, tênis sujos, jaquetas de couro e corte de cabelo que lembrava crianças com síndrome de down, que se tornaria o próprio sinônimo de punk rock americano: os "irmãos" Ramones. Patti Smith e seu guitarrista, Lenny Kaye, também já rondavam a área, e em breve tomariam coragem pra subir ao palco também. A única exigência pra se apresentar na casa era ter material próprio – o sujeito podia emendar uns covers, mas precisava apresentar eminentemente repertório seu. Logo, logo, a fama do C.B.G.B. espalhou-se pelo país e fora dele: além de impulsionar as carreiras desse pessoal do punk/new wave americanos (Richard ‘Please Kill Me’ Hell, Cramps, Dictators, os Dead Boys e o Pere Ubu, vindos de Cleveland, ...), foi a porta de entrada para artistas emergentes de outras bandas, como o Police (?!), que tocou lá em 1978.

A casa rival do CB’s foi o Max’s Kansas City, que abrigara os shows de despedida do Velvet Underground – manja aquele disco ‘Velvet Underground Live at Max’s Kansas City’? Foi gravado lá, com um gravadorzinho cassete, pela secretária de Andy Warhol, Brigid Polk (é, portanto, uma gravação pirata depois oficializada) –, teve como banda "residente" os New York Dolls, foi o local da prisão de Alice Cooper em sua primeira tour novaiorquina mais longa, e por onde Iggy e seus Stooges passaram quebrando tudo (com o Iguana inclusive esfolando a si mesmo) em 1973, mas a política do Max’s era um tanto discriminatória: os caras só agendavam pra tocar bandas que tivessem contratos com gravadoras. O Max’s também adquirira mais uma fama de local para um "hanging out" – Andy Warhol, sua musa Candy Darling e até Zsa Zsa Gabor costumavam dar as caras por lá. No CB’s, não: o sujeito tava lá pra ver o show - e uma vez pago o ingresso, não tinha aquela de dar migué de ir dar um rolé na vizinhança e voltar. Foi ao ar, perdeu o lugar. A competição entre as duas casas deu-se principalmente em função do sucesso dos festivais de verão, dedicados a bandas novas, sem gravadora, do CB’s. O pessoal do Max's então procurou Kristal pra propor-lhe o seguinte "acordo de cooperação": que não agendassem as mesmas bandas – ou bandas de mesma proporção – pra mesma noite. Ocorre que, enquanto o Max’s oferecia uma noite pros músicos, Hilly já ia agendando três de cara. Óbvio que o CB’s ficava com a preferência.

O CB’s também tinha um ambiente mais caseiro, como nota David Byrne, no livro ‘From the Velvets to the Voidoids – A Pre-Punk History for a Post-Punk World’, do jornalista inglês Clinton Heylin, lançado em 1993: "o CBGB’s era o tipo de lugar onde você sentava no bar e, quando sua hora chegava, podia caminhar normalmente até o palco. Quando terminava a apresentação, descia, tirava o suor do rosto e então caminhava de volta ao bar pra tomar mais uma cerveja". Seu ex-companheiro de Talking Heads, Chris Frantz, comenta o entusiasmo da primeira vez que entrou lá: "os Ramones estavam se apresentando, e também uma versão inicial do Blondie, antes de se chamar Blondie. Pensei ‘cara, vim ao lugar certo’". No livro de Heylin, o autor traça um perfil do público cativo do CB’s: seu apelo era mais pro pessoal que curtia art-rock do que aquela "brigada ‘let’s rock’", "aqueles tipos que saiam mais pra se divertir, público regular do Max’s, eram menos rigidamente divididos". Alan Vega, frontman do Suicide, confirma: "Todo mundo do Brooklyn, punks do Queens, punks do Bronx, punks de New Jersey, ... Esse era o público do Max’s quando eram adolescentes. Nós também atraíamos o pessoal mais ‘art’, que nos odiava mais do que ninguém. Ironicamente, eles foram os caras que mais trouxeram encrenca ... O CB’s atraía mais essa ‘art crowd’, o pessoal mais intelectualizado, sem nenhuma dúvida. O Max’s atraía mais os garotos do Brooklyn ... a ‘art crowd’ não ia ao Max’s". Isso na primeira fase, a que pegou justamente a geração que renovou o rock americano nos anos 70; a segunda, já nos anos 80, é basicamente aquela em que as matinês hardcore sustentavam a casa: Sick of It All, Agnostic Front, Cro Mags, Murphy’s Law. Os lendários Bad Brains também desfilaram sua fúria por lá, em apresentações antológicas (inclusive encontráveis no Youtube). Mas com o tempo a violência tomou conta do local e a cena dispersou-se.

Como tudo o que é bom um dia termina, a casa de número 315 da Bleecker Street um dia fechou as portas – precisamente em 15 de outubro de 2006, após um concerto final de Patti Smith em que teve "parabéns a você" a Flea, dos Red Hot Chilli Peppers (que era convidado do show), Patti alternando o refrão de ‘Gloria’ com os versos "Hey! Ho! Let's Go!" em homenagem aos Ramones, o guitarrista do Television, Richard Lloyd, subindo ao palco pra tocar algumas canções, e com Patti, na canção final, ‘Elegie’, lendo uma lista de artistas já falecidos que passaram pelo palco do CBGB’s. Entre os mortos que fizeram a história do local, está o próprio fundador, Hilly Kristal, que foi-se desta em 28 de agosto de 2007, depois de lutar contra um câncer de medula – e não sem antes lutar pra manter aberto o próprio CBGB, já que os proprietários do local (o Comitê de Residentes do Bowery, que atende aos sem-teto do distrito novaiorquino) exigiam uma fortuna de aluguel e a ação foi parar na justiça. Kristal perdeu – e com ele toda a comunidade artística da cidade. Chhetah Chrome, dos Dead Boys, lamentou o fato ao New York Post: "Manhattan perdeu sua alma para os lordes da grana". Hoje, o espaço é ocupado pelo designer de moda John Varvatos. O velho e decadente prédio do Bowery, com o passar do tempo, virou, literalmente, fashion.

No final do mês passado, o Tribeca Film Festival exibiu o documentário ‘Burning Down the House: the Story of CBGB’. Dirigido por Mandy Stein, que mudou-se de L.A. pra Nova Iorque em 2005 justamente pra acompanhar a contenda judicial envolvendo Hilly e os proprietários do local que servia de morada para o berço da new wave novaiorquina. Além dele, as entrevistas incluem Tommy Ramone, Lenny Kaye, Sting, Henry Rollins, ... e ainda cenas de shows dos Dead Boys, Blondie, Bad Brains, Talking Heads, Television ... O foco, claro, é Hilly Kristal, lembrado com carinho por Chris Frantz: "sempre achei Hilly um cara maravilhoso, corajoso e filosófico. Para ele, não importava se sua banda fosse famosa. Desde que seu trabalho fosse sincero, Hilly lhe daria uma chance de mostrá-lo". Mas nem todo mundo gostou da película: o filho de Kristal, Dana, reclama a falta do crédito à sua sua mãe, Karen, que desenhou o famoso toldo e as camisetas do clube (Nota pessoal: eu tinha uma, branca, mas acho que deve ter-se desmanchado de tantas vezes que foi usada pra dormir) e também administrava as concorridas matinês de Domingo do CB’s. Well ...

O fato é que o CBGB’s marcou as vidas de quem o frequentou, nos anos 70, 80 e até 90. O lugar era tão festejado que foi retratado num episódio dos Simpsons, aparece de relance no clássico filme de gangues ‘The Warriors’, dirigido por Walter Hill em 1983 – a gangue Lizzies, do Bowery, leva ao seu apartamento três membros dos Warriors, e o apê é justamente do outro lado da esquina do CB’s –, e em todo o seu esplendor punk em ‘O Verão de Sam’, de Spike Lee, que se passa no escaldante verão novaiorquino de 1977, famoso pela explosão punk (a cena gravada no local, sob os acordes de 'Baba O'Reilly', do The Who, é arrepiante) e a onda disco, além do assassino em série que atormentava casais e é o tema central do filme. Influenciou espeluncas cult por todos os cantos do planeta: seus banheiros, ornamentados por grafites, geralmente sujos e onde podia acontecer de tudo, desde consumo de drogas as mais variadas até sexo selvagem; suas paredes cruas – por vezes descascadas -, cheias de cartazes de shows (e mais street art); o público formado por aquela saudável mistura de gente comum, artistas, freaks, junkies, nobodies; o local, pequeno, que facilitava a concentração do público e criava uma intimidade entre as bandas e a audiência, ... tudo isso influenciou, por exemplo, o Ocidente e o Garagem Hermética (o primeiro e original, aquele do Leó Felipe e do Ricardo, que fechou as portas na década passada).

Bom, quanto ao meu sonho que se realizou naquela noite de dezembro de 93 (ou janeiro de 94, damned memory!), posso dizer que já na entrada dei de cara com o disco de ouro do Helmet, escposto numa parede. Peguei uma Heineken e postei-me no balcão do bar. Primeiro, tocaram os tais 360’s, que faziam um som pop, melódico e barulhento. Simpáticos, mas nada demais. O vocalista, um alemãozinho com cara de skatista – street wear discreta, mas daqueles tipos assim como os Beastie Boys, guri bem criado no upper side de Manhattan, e que um dia resolveu curtir sua onda punk –, mal terminou o show, pegou sua mochila e saiu do palco andando normalmente. Depois, entrou o tal Vodka, um trio fazendo um som que unia uma certa levada funk ao clima noisy/etéreo que fez a fama de várias bandas da big apple desde o início dos anos 90. Achei bacana, e até puxei papo com a baterista, muito legal – e que exibia um suspeitíssimo cortezinho em um dos braços. Disse que esperavam gravar o primeiro disco em breve, mas que eu podia procurar nas lojas do Village um single com três músicas do trio (achei ‘My Name is Dave’ dias depois. Dias depois, também descobri que a moça em questão, a batera Celia Farber, escrevia críticas pra revista Spin). Por fim, Band of Susans. Do caralho, um dos melhores shows que vi na América naquele ano (e que teve ainda Iggy Pop lançando ‘American Caesar’, Neil Young com a companhia de Booker T & The M.G.’s, os P-Funk All Stars de George Clinton completinhos – e não com elenco reduzido, como foi aqui em POA no Free Jazz, três anos depois –, Diamanda Galás entoando blues dos infernos ao piano, ...)! Além da influência noisy citada e das duas guitarras fazendo contraponto uma a outra, das ambiências próximas ao som shoegazer do My Bloody Valentine, o quinteto tinha muita energia. Das duas Susans originais, só restava então a Stenger (gente fina pra cacete, também: bati um papo com ela: "sou brasileiro, infelizmente nenhum disco de vocês foi lançado lá ainda, blá blá blá, blá blá blá ..."), vocalista e baixista, que dividia com o também vocalista e guitarrista Robert Poss – estudante da música de vanguarda de John Cage – o conceito do som do grupo. O show que eu vi foi pra promover o quarto álbum da banda, ‘Veil’, lançado em 1993 mesmo. Claro que trouxe na bagagem o disquinho também. Infelizmente, a banda já não existe mais: encerrou as atividades em 1996 – o título irônico de seu derradeiro álbum, lançado um ano antes, era ‘Here Comes Success’.

Depois do show, voltei pro albergue feliz da vida: nem a facada do taxista nem os chatos/palhaços/trouxas/babacas franceses que ocupavam meu quarto e não deixaram ninguém dormir aquela noite seriam capazes de alterar o meu humor. Ainda voltei lá um dia depois, pra visitar o CBGB Record Canteen, a loja de discos e café que localizava-se no número 313 – a portinha ao lado –, um espaço também usado pra shows de menor porte. Nessa noite, tocava o maluco John Zorn, que ia mandar ver seu noisy-jazz, mas resolvi não pretigiar. Depois de ouvir, na entrada do lugar, ‘Flying High (In the Friendly Sky)’, linda canção do ‘What’s Goin’ On’, do Marvin Gaye, me deixei levar pela doçura da melodia e entrei numa espécie de transe, me sentia como se estivesse pisando nas nuvens. Ainda levei a camiseta e tentei puxar conversa com a menina tatuada que atendia no local, mas confesso que, embora até solícita, ela me assustou: era bem aquele tipo wild, rude, cheio de veneno que eu imaginava parte típica da fauna do local. Well, hora de me recolher. A noite tava ganha, a viagem tava ganha. Acho que se eu vejo esse documentário sobre o CB’s hoje, eu pago mico.




O fotógrafo era (é) amador, mas o lugar era do caralho

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