quarta-feira, 25 de março de 2009

Um dia numa locadora perto de você (3) – Sidney Lumet


O norte-americano Sidney Lumet, que em 25 de junho próximo completa 85 anos de idade, é, entre os cineastas do primeiro time, seguramente um dos mais velhos em atividade, o que não quer dizer que sua obra carregue as marcas do tempo, muito pelo contrário. Não só os filmes mais antigos envelheceram bem, como no presente seu trabalho ainda demonstra grande vigor, como no recém-lançado em DVD ‘Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto’, um dos melhores filmes que passaram pelas salas brasileiras no ano passado. Desde a estréia, com ‘12 Homens e Uma Sentença’, um dos mais clássicos filmes de tribunal americanos já feitos – coisa que americano adora e Lumet sabe fazer muito bem -, construiu uma carreira sólida, e embora nunca tenha sido reconhecido como um cineasta de vanguarda, renovador da linguagem ou coisa parecida (o que de fato não é), obteve desde o início da carreira prestígio de público e crítica, que reconhecem sua integridade, a unidade temática de sua obra – personagens em situações-limite, enfrentando o (um) sistema (que lhes é amplamente desfavorável) ou defrontando-se com questões éticas importantes – e a forma segura, ágil e consistente como conta suas histórias. Normal pra quem vem de uma família teatral – ele mesmo estudou artes cênicas e atuou em peças da Broadway ainda criança e criou e dirigiu um grupo off-Broadway após voltar da Guerra, em 1946 – e antes do cinema trabalhou na TV. Estranhamente, Lumet tem poucos hits de sua cinquentenária carreira disponíveis por aqui – basicamente o citado ’12 Homens’ e ‘Um Dia de Cão’. Dois dos seus filmes mais populares – e contundentes – estão inexplicavelmente ausentes desde sempre nas prateleiras de DVDs das lojas e locadoras brasileiras (embora tenham sido lançados em VHS).

SERPICO, de 1973, traz Al Pacino no papel-título, um ano após despontar para o estrelado com ‘O Poderoso Chefão’. É baseado numa história real, a de um policial novaiorquino honesto que se insurge contra a corrupção ao mesmo tempo em que mantém outras convicções que igualmente lhe trazem problemas junto aos colegas: o sujeito é filho legítimo da contracultura (?!), vive e frequenta a boemia do Village, mantém os cabelos compridos e o barbão que lhe tapa a cara, e, pecado dos pecados, é ligado a gente de orientação esquerdista. Serpico ainda é adepto da não-violência (?!?!), e quando depara-se com os colegas levando bola do crime organizado resolve abrir a boca – aos chefes imediatos, inicialmente. Estes, previsivelmente, não levam adiante as denúncias, e como a hostilidade dos colegas pro lado do nosso herói só cresce, sua saúde e seu relacionamento com a noiva vão se complicando. Uma luz surge quando Serpico conhece um inspetor de polícia que se interessa por sua cruzada moral, mas quando o tira é transferido para a delegacia de narcóticos, o clima de antipatia a ele é geral, culminando com uma batida em um laboratório pra confecção de heroína, onde ... contar o resto seria bancar o estraga-prazeres.

Difícil dizer qual o maior trunfo do filme. Tem-se mais uma vez a direção segura e o ritmo preciso de Lumet, mais um grande momento de um excelente e carismático ator, pronto para firmar-se como um dos grandes de sua geração – e ainda por cima um sujeito que é a cara do cidadão comum criado nas ruas de sua cidade natal –, as filmagens em locação que dão um tom extra de realismo, quase documental, à obra, a crônica da corrupção das instituições especialmente em um período conturbado da história americana – claro que muito da repercussão do filme vem do fato de que as revelações do caso Watergate haviam sido feitas apenas alguns meses antes de seu lançamento. O Frank Serpico de Pacino rendeu ao ator sua segunda indicação seguida ao Oscar de melhor ator – no ano anterior, concorrera pelo Michael Corleone do primeiro ‘Chefão’ -, mas o cara só seria premiado nos anos 90, com ‘Perfume de Mulher’. O filme, por sua vez, inspiraria uma série televisiva homônima, lançada em 1976 nos EUA – foi sucesso no Brasil também. (Na verdade, todas as séries policiais americanas de TV que vieram logo depois, de Baretta a Columbo, tem um quê de ‘Serpico’.)

REDE DE INTRIGAS ('Network', 1976) é figurinha fácil nos cursos de jornalismo – claro, o tema é a grande mídia e seus absurdos. Uma sátira arrasadora ao cotidiano de um telejornal de uma grande rede de TV, em que os personagens principais estão quase todos à beira da loucura: tudo começa quando o âncora, o veterano Howard Beale (Peter Finch, na interpretação de sua vida), é demitido em razão da baixa audiência do noticioso e também de sua idade – comanda o jornal há 25 anos. O apresentador, que ainda tem duas semanas no ar pra cumprir, no programa seguinte anuncia à audiência que por conta da dispensa vai suicidar-se ao vivo com um tiro na cabeça em um dos próximos programas. Imediatamente é comunicado pela direção da emissora que não haverá próximo programa, mas seu amigo de longa data e diretor do núcleo de jornalismo da emissora, Max Schumacher (William Holden), o único que parece ser minimamente ponderado naquele universo insano, convence a direção a deixar Howard ir ao ar uma última vez, pra se retratar e poder ter, enfim, uma saída digna. Mas o que faz Max então? Volta ao ar ainda mais alucinado pra dizer como a vida é uma merda – ele repete o palavrão várias vezes, algo impensável na televisão americana até hoje –, que perdeu sua paciência e termina por declarar que “eu simplesmente esgotei o meu papo furado”. Aí, então, se dá o mais inusitado (ou não, levando-se em consideração a atmosfera surreal do negócio): como o manifesto do velho apresentador rendeu repercussão tão instantânea quanto astronômica, os caras decidem não só mantê-lo no ar, revogando a demissão, como explorar essa sua veia, digamos, crítica. No programa seguinte, ele resolve dizer que está de saco cheio e conclama a audiência a demonstrar também sua inconformidade: “vão até a janela e gritem, o mais alto que puderem: eu estou furioso e não vou mais aceitar isso!” - uma das mais conhecidas frases do cinema americano dos anos 1970, ao lado da manjada “você está falando comigo?” imortalizada pelo Travis Bickle feito por Robert De Niro em ‘Taxi Driver’, lançado coincidentemente no mesmo ano, e que acabou consagrando-se como um bordão popular desde então.

Mas quem pensa que a insanidade para por aí, se engana: a personagem mais fora da casinha da película é a executiva Diana (Faye Dunaway, no auge da carreira), maníaca por números e a principal figura da emissora a defender a ideia do noticiário ser tratado como um show, e que passa a tratar Beale como “o profeta louco das ondas aéreas”. Seus olhos brilham quando fala sobre seus planos estapafúrdios para a emissora: num dado momento, passa a ter um caso com Max, sujeito íntegro, jornalista da velha guarda compromissado com certos valores básicos do bom jornalismo, exatamente o oposto de Diana, que é tão monotemática e obcecada que até quando vai pra cama com o tiozinho fala de trabalho e índices de audiência, chegando ao orgasmo no exato momento em que discorre ao amante sobre o novo programa que tem em mente, “A Hora de Mao Tse-Tung” (?!?!?!?!?!), em uma das sequências mais marcantes do filme. Os atores são um capítulo à parte, por sinal: Faye e Peter Finch levaram os prêmios principais da Academia, Beatrice Straight (como a mulher abandonada por Max em prol da jovem e ambiciosa executiva), o Oscar de coadjuvante, mas o citado William Holden, mais Robert Duvall (como o chefão da emissora) e Ned Beatty (o chairman do grupo que controla a United Broadcast System - UBS) também brilham. ‘Rede de Intrigas’ foi indicado a dez Oscars, e além dos citados prêmios pro trio de atores, levou ainda o de melhor roteiro original pra Paddy Chayefsky. Ainda sobre os citados Oscars de interpretação, um dado curioso: antes de Heath Ledger, laureado este ano pelo Coringa de ‘O Cavaleiro das Trevas’, Peter Finch foi o único ator a ser premiado postumamente pela Academia. O ator londrino morreu apenas dois meses antes da cerimônia de entrega, vítima de um ataque cardíaco, aos 60 anos de idade.

Da obra de Lumet, vale citar ainda os aclamados ‘O Homem do Prego’ e ‘Limite de Segurança’ (ambos de 1964 – confesso que não vi nenhum), ‘O Encontro’ (1969, idem) e ‘O Golpe de John Anderson’ (ótimo thriller com Sean Connery e Martin Balsam) e ‘O Veredito’ (1982, com Paul Newman, outro clássico filme de tribunal, com roteiro de David Mamet), também desprezados pelas distribuidoras brasucas. Já ‘Longa Jornada Noite Adentro’ (1962), adaptação do clássico teatral ganhador do Pulitzer de Eugene O’Neil, com Katherine Hepburn, Ralph Richardson e um Jason Robards em início de carreira, teve mais sorte por aqui, e é um belo trabalho, mantendo a contundência do texto, um doloroso acerto de contas de uma família disfuncional (inspirado na própria família de O’Neil), embora ressinta-se um pouco da origem: é teatro filmado explícito. Lumet escreveu um livro bacana sobre a prática cinematográfica, ‘Fazendo Filmes’, lançado no Brasil em 1998 pela editora Rocco, leitura prazerozíssima não só pra profissionais da área e estudiosos, mas pra quem se interessa pelo processo de realizar filmes, passo a passo, contado de forma divertida e envolvente. Atualmente, o cineasta trabalha em ‘Getting Out’, thriller sobre um presidiário à beira do desequilíbrio (mais um) às voltas com jogos mortais envolvendo o psiquiatra da prisão e a mulher que ama, que deve ser lançado ainda este ano.

3 comentários:

  1. Alô José: profícua aula de cinema. A sua e a do nosso Lumet. No aguardo do post sobre aquela que foi um dia a mais liberal das emissoras de rádio...Abraços

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  2. Bah, eu tenho que ver Rede de intrigas, é uma lacuna na minha formação! (hehheeh). Como disse o Anderson, teus textos são uma aula!!!

    beijosss

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  3. Os elogios da dupla, minha mulher e um dos melhores colegas que já tive (o texto sobre a 103.3 vai sair, logo, logo), são suspeitos. Mas é óbvio que fico feliz, até por saber que são de coração.
    Bêzzu, Nênis.
    Abraço, índio velho.

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