terça-feira, 25 de agosto de 2009

Quando eles eram jovens

Dylan pode vir de uma sequência de álbuns inspirados, Neil Young revelar considerável inquietude, Patti Smith seguir como fonte de inspiração pra cantoras/compositoras com atitude, Lou Reed segurar a onda e os Stones ainda terem gás pra saracotear pelos palcos planetários com 942 anos de idade nas costas, mas é inegável que nada se compara, no universo rock, ao frescor dos primeiros anos – a “fúria do jovem cão”, como chama o venerável Júlio Reny aquela época em que “o cara tem muita coisa a dizer, muita coisa guardada” chutando a porta pra sair. Não que o manjado ditame de que não se pode confiar em ninguém com mais de 30 anos ainda faça algum sentido: claro que é possível gravar boa música e até manter uma certa integridade com a idade – o sujeito, afinal, vai fazer o quê, se largar a cachaça a essas alturas do campeonato? (Se transpusermos essa conversa pro cinema, ainda dá pra lembrar o caso de Buñuel, que fez alguns – vários – de seus filmes mais provocativos depois dos 65 anos). Mas não adianta: sendo o rock uma música eminentemente relacionada à juventude – ao menos espiritual –, a comparação com as gravações dos primeiros anos é cruel, como uma leva de relançamentos recentes comprova. Vejamos:

PATTI SMITH
A poetisa punk já não era tão guria quando lançou seu álbum de estreia, ‘Horses’ – o disco de cabeceira de Bono e Michael Stipe, entre tantos outros, já tema de pauta aqui no CM – em 1975: tinha 28 pra 29 anos. Já havia labutado na imprensa musical e lançado alguns livros de poesia, e costumava se apresentar declamando seus versos na companhia do guitarrista Lenny Kaye até entrar em estúdio e gravar, com produção do ex-Velvet John Cale, seu debut. 'Horses' abre com os famosos versos “Jesus morreu pelos pecados de alguém, não pelos meus”, inseridos na versão de ‘Gloria’, do Them, segue com a levada reggae de ‘Redondo Beach’ e ainda traz as fundamentais ‘Birdland’, ‘Free Money’ e a épica ‘Land’, um poema em três partes em que a personagem é um garoto que é atacado por um bando. ‘Radio Ethiopia’, do ano seguinte, é o primeiro creditado a The Patti Smith Group, é mais acessível e tem grandes canções como ‘Ask the Angels’, ‘Pissing in a River’, ‘Pumpin (My Heart)’, além de mais um épico, a faixa-título. ‘Easter’ vem em 1978, interrompendo o ritmo de lançar um disco por ano por um motivo sui generis: em 1977, Patti quebra duas costelas em um show na Flórida e passa o ano de molho. É desse terceiro álbum, porém, sua música mais conhecida pelo grande público, a bela ‘Because the Night’, de autoria de Bruce Springsteen – hit de top 10 e tudo, o único de sua carreira –, além da incendiária e pol~emica ‘Rock’n’Roll Nigger’. ‘Wave’, de 1979, que tem produção de Todd Rundgren e conta com ‘Dancing Barefoot’ (gravada pelo U2) e a versão de ‘So You Want to Be (A Rock 'N’ Roll Star) dos Byrds, fecha o pacote – e a brilhante fase inicial da carreira de Patti, que logo após se recolheria ao aconchego do lar com o marido Fred ‘Sonic’ Smith, ex-guitarrista do MC5, e os filhos, passando a dedicar-se à sua poesia. Um breve reaparecimento deu-se em 1988, com ‘Dream of Life’, mas a definitiva volta à cena musical viria só após uma sucessão de perdas significativas – o marido e o irmão em 1994, e, antes, seu grande amigo Robert Mapplethorpe e o tecladista de sua banda, Richard Sohl –, com o dolorido ‘Gone Again’. Seus discos têm sido lançados regularmente no Brasil – apenas o último, o álbum de covers (Beatles, Stones, Nirvana, Neil Young, Doors, Dylan, Stevie Wonder) ‘Twelve’, a gravadora tá devendo. Pros completistas – ou mesmo pra aqueles que preferem resumir o negócio todo –, no entanto, a pedida é o CD duplo ‘Land (1975-2002)’, uma compilação bacana – que, curiosamente, não traz a faixa que lhe dá título -, contendo clássicos, hits, demos, faixas só lançadas em single (como sua estreia, ‘Piss Factory’) e gravações ao vivo. O que não dá é pra ignorar a obra de Patti, um daqueles cânones incontestáveis.








NEIL YOUNG
O ‘godfather of grunge’, que este ano já despejou no mercado um álbum de inéditas, ‘Fork Road’, vem tendo sua obra pregressa relançada – e até mesmo lançada – lá fora com capricho nos últimos anos: além da edição, pela primeira vez em CD, do clássico álbum maldito ‘On the Beach’ (o sombrio disco de 1974, um dos preferidos de Kurt Cobain, que marca uma fase especialmente trágica na vida de Young), do ótimo ‘American Stars ‘N Bars’ (de ‘Like a Hurricane’ e ‘Star of Bethlehem’) e de outros menos votados – ‘Hawks and Doves’, ‘Reactor’ e a famigerada aventura eletrônica de ‘Trans’-, algumas preciosidades há muito guardadas têm vindo à tona, mais ou menos nos moldes dos ‘Bootleg Series’ de Dylan: os registros ao vivo ‘Live at the Fillmore East 1970’, ‘Live at the Massey Hall 1971’ e ‘Sugar Mountain: Live at the Canterbury House 1968’ trazem o ex-Buffalo Springfield solidificando seu trabalho de cantor e compositor solo, em apresentações marcantes – especialmente os shows de 1970, acompanhado do Crazy Horse, e de 1971, em que antecipa canções que seriam gravadas em ‘Harvest’ e ‘On the Beach’. O caixotão há pouco editado lá fora, ‘Neil Young Archives, Vol. 1: 1963-1972’, deixa tudo com ares de super-retrospectiva, mas além do investimento vultoso – são 8 CD’s, mais DVD (também disponível em Blu-Ray) –, e de trazer quase tudo o que foi registrado nos primeiros álbuns, mais suas canções com Buffalo Springfield e Crosby, Stills, Nash & Young, têm coisas que só vão interessar aos fãs mais doentes do cara, tipo registros de sua banda inicial, The Squires, e gravações com Comrie Smith (who?). Os quatro álbuns iniciais de sua carreira é que compõesm um capítulo à parte na história do rock.
Neil Young’, o primeiro, de 1969, certamente é o mais modesto do pacote, mas tem ‘The Loner’ – filha de ‘Mr. Soul’, dos seus tempos de Buffalo Springfield, na pegada hard – e ‘The Old Laughing Lady’, por exemplo, e outros belos momentos como ‘If I Could Have Her Tonight’ e ‘What Did You Do to My Life?’. A maturidade viria com os três discos seguintes. ‘Everybody Knows This Is Nowhere’, também de 1969, é a primeira colaboração com sua banda definitiva, o Crazy Horse, enxutinho – 7 faixas, 40 minutos –, escancara ainda mais no volume e na microfonia, mas também tem seus momentos de calmaria, como nas acústicas ‘Round & Round (It Won’t Be Long)’ e ‘The Losing End (When You’re On)’, ótimas canções pouco lembradas. O que marca mesmo, contudo, são as pauladas: o álbum abre com ‘Cinnamon Girl’ e fecha com ‘Cowgirl in the Sand’, e tem lá pelo meio ‘Down by the River’ (‘Down by the River/I Shot My Baby’, ele vocifera). Já é demonstrado por aí o gosto por verdadeiras jams gravadas que marcaria seu trabalho com o CH – quem viu, nem que seja pela TV, o show no Rock in Rio 2, de 2001, sabe bem do que se trata: os caras estendem as músicas ao máximo de entrega e tensão, pra que Young dê vazão à sua angústia, extraindo solos de guitarra em que a ênfase não é na sua capacidade técnica como instrumentista – e ele toca bem pra burro –, mas na emoção. Cordas são rebentadas, guinchos são ouvidos, e os magistrais ruídos tirados do abuso do instrumento, a exemplo de seu ídolo Hendrix, funcionam a favor. ‘After the Gold Rush’, de 1970, traz uma coleção de clássicos, da faixa-título a ‘Southern Man’, de ‘Only Love Can Break your Heart’ a ‘Don’t Let It Bring You Down’. É talvez o disco que mais forneça repertório pros shows de Neil Young até hoje, assim como o platinado trabalho posterior. Além dos comparsas do Crazy Horse e de velhos colaboradores como Jack Nietzche e Stephen Stills, ‘Gold Rush’ traz o prodígio Nils Lofgren, 17 anos à época, esbanjando desenvoltura tanto no piano quanto na guitarra. A essa altura, Neil Young já consolidou-se. Na sequência, ‘Harvest’, lançado em 1972, só o confirma como um dos grandes talentos de sua geração, e é também o disco preferido de Young e de seus fãs: foi o que mais vendeu até hoje, chegando às paradas sobretudo apoiado pelo single ‘Heart of Gold’, número um nos charts de então (curiosamente, foi sucedida por ‘A Horse with No Name’, do America, claramente “inspirada” no som de Young). A cortante ‘The Needle and the Damage Done’ (registrada ao vivo), ‘Old Man’, ‘Out on the Weekend’, ‘Are You Ready for the Country?’, ... a bolacha é uma sucessão de canções populares e permanentes. A levada é bem folk de raíz, e a banda da vez é The Stray Gators, mas a London Symphony Orchestra também diz presente, embelezando ‘A Man Needs a Maid’. Tem, ainda, participações de Linda Rondstadt a James Taylor, passando por seus parceiros David Crosby, Stephen Stills e Graham Nash. Esse álbum já havia recebido uma edição comemorativa de 30 anos de lançamento, em 2002, em DVD Áudio, e agora chega também ao compact disc tradicional – remasterizada, como os outros três, como pediam os fãs há muito. De Young, fica faltando apenas ‘Time Fades Away’, o controverso álbum ao vivo lançado logo a seguir, em 1973, até hoje não lançado em CD.








STEVIE WONDER
Tem um de seus discos fundamentais – o preferido de CM, se é que interessa – posto nas lojas brasileiras, com precinho camarada e em embalagem ‘eco pack’: ‘Innervisions’ é a mais bem sucedida calibragem soul/jazz do pop negro da gloriosa década de 1970 de um dos mais assombrosos talentos da música afro-americana de todos os tempos: Little Stevie tinha apenas 23 anos, vinha de dois clássicos consecutivos – ‘Music of My Mind’, de 1970, e ‘Talking Book’, de 1972, pra muitos seu melhor álbum –, e lançava então seu 21º (!!!!!) trabalho em agosto de 1973. Os temas sociais – ‘Living in the City’ –, a espiritualidade – ‘Visions’, o hit ‘Higher Ground’ (aquela mesma, regravada pelos Red Hot Chili Peppers) –, a política – Richard Nixon, a quem seria endereçada ‘You Have’t Done Nothing’ no álbum seguinte, já era alvo aqui da sensacional ‘He’s Misstra-Know-It-All’ -, ... tudo é explorado com brilhantismo nas canções do prodígio aqui. Um álbum magnífico, de um talento superior, daqueles que não surgem toda hora. Os igualmente indispensáveis ‘Fulfillingness’ First Finale’ (1975) e ‘Songs in the Key of Life’ (duplo, de 1976) viriam na sequência, pra colocar um enorme ponto de interrogação nos fãs da melhor música produzida na América: quem foi o grande soulman da época, Stevie ou seu companheiro de Motown, o revolucionário, emotivo e sofisticado Marvin Gaye, que, chutando o balde e impondo suas condições a Berry Gordy, o chefão da gravadora, acabaria, também, influenciando a grande guinada do próprio garoto multiinstrumentista? COMPANHIA MAGNÉTICA não tem a resposta, nem sequer pensa no assunto; abraça os dois e vai em frente.








Por enquanto, era isso. Na parte 2, tem Lou Reed, Bowie e Stones.

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