quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Assim Foi Escrito (11) - HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS (Edgar Allan Poe)

Durante um dia inteiro de outono, escuro, sombrio, silencioso, em que as nuvens pairavam, baixas e opressoras, nos céus, passava eu, a cavalo, sozinho, por uma região singularmente monótona – e, quando as sombras da noite se estendiam, finalmente me encontrei diante da melancólica Casa de Usher. Não sei como foi – mas, ao primeiro olhar lançado à construção, uma sensação de insuportável tristeza me invadiu o espírito. Digo insuportável, pois aquele sentimento não era atenuado por essa emoção meio agradável, meio poética, com que o nosso espírito recebe, em geral, mesmo as imagens naturais mais severas da desolação e do terrível. Contemplei a cena que tinha diante de mim – a simples casa, a simples paisagem característica da propriedade, os frios muros, as janelas que se assemelhavam a olhos vazios, algumas fileiras de carriços e uns tantos troncos apodrecidos – com uma completa depressão de alma, que não posso comparar, apropriadamente, a nenhuma outra sensação terrena, exceto com a que sente, ao despertar, o viciado em ópio, com a amarga volta à vida cotidiana, com a atroz descida do véu. Era uma sensação de alguma coisa gelada, um abatimento, um aperto no coração, uma aridez irremediável de pensamento que nenhum estímulo da imaginação poderia elevar ao sublime. Que era aquilo – detive-me a pensar -, que era aquilo que tanto me enervava, ao contemplar a Casa de Usher? Era um mistério de todo insolúvel; não podia lutar contra as sombrias visões que se amontoavam sobre mim enquanto pensava naquilo. Fui obrigado a recorrer à conclusão de que existem, sem a menor dúvida, combinações de objetos naturais muito simples que têm o poder de afetar-nos desse modo, embora a análise desse poder se baseiem em considerações que ficam além de nossa apreensão. Era possível, refleti, que um arranjo simplesmente diferente de particularidades da cena, dos detalhes do quadro, fosse o bastante para modificar, ou talvez, para aniquilar aquela impressão dolorosa. Agindo de acordo com essa ideia, dirigi meu cavalo até a margem escarpada do negro e sombrio lago, que estendia o seu tranquilo brilho junto à casa, e fitei, mas com um estremecimento ainda mais vivo do que antes, as imagens reconstituídas e invertidas dos carriços cinzentos, dos troncos fantasmagóricos e das janelas que se assemelhavam a olhos vazios.

(‘A Queda da Casa de Usher’, 1839)


Desde a infância, tornaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu caráter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tornava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e meus pais me permitiam possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade de meu caráter e, quando me tornei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afeto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode Ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiverem ocasiões frequentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, colehos, um macaquinho e um gato.

Este era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia frequentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o fato apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.

Pluto – assim se chamava o gato – era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua.

Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu caráter como o meu temperamento – enrubesço ao confessá-lo – sofreram, devido ao demônio da intemperança, uma mudança radical para pior. Tornava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência.

Meus animais, certamente, sentiam a mudança operada em meu caráter. Não apenas não lhes dava atenção nenhuma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afeto, cruzavam em meu caminho. Meu mal, porém, ia tomando conta de mim – que outro mal pode se comparar ao álcool? – e, no fim, até Pluto, que, começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tornara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor’.

(‘O Gato Preto’, 1843)


Voltando sobre nossos passos, chegamos de novo à frente da casa, batemos à porta e, após apresentar as credenciais, os agentes que estavam de guarda permitiram a nossa entrada. Subimos as escadas, até chegar ao aposento onde o corpo de Mademoiselle L’Espanaye fora encontrado, e onde se achavam ainda os dois cadáveres. Como de costume, o aposento permanecia na mesma desordem que ali reinava por ocasião do crime. Nada mais vi além do que fora publicado pela Gazette des Tribunaux. Dupin examinava tudo minuciosamente, sem excluir os corpos das vítimas. Dirigimo-nos, depois, para os outros aposentos e, finalmente, para o quintal. Um gendarme nos acompanhou nessa visita. O exame do local nos manteve ocupados até o cair da noite, quando, então, nos retiramos. A caminho de casa, meu companheiro entrou por um momento na redação de um dos jornais diários.

Já disse que eram muitos os caprichos de meu amigo, e eu sabia como contorná-los. Até o dia seguinte, ao meio-dia, evitou falar sobre o crime. Só então me perguntou, subitamente, se eu observara algo de particular no local da tragédia.Em sua maneira de acentuar a palavra particular havia algo que me fez estremecer, sem que soubesse por quê.

- Não, nada de particular – respondi. Pelo menos, nada que já não houvéssemos lido no jornal.

- Receio que a Gazette – respondeu-me – não tenha penetrado no insólito horror do que aconteceu. Mas deixemos de lado as opiniões ociosas desse jornal. Parece-me que esse mistério é considerado insolúvel devido exatamente à razão que deveria fazer com que fosse considerado de fácil solução. Refiro-me ao caráter outré (NOTA: exagerado) das circunstâncias que o cercam. A polícia está confusa ante a aparente ausência de motivo, quer quanto ao que se refere ao próprio crime, quer quanto à atrocidade do assassino. Está perplexa, também, ante a aparente impossibilidade de relacionar as vozes ouvidas durante a discussão com o fato de não se haver descoberto ninguém nos aposentos superiores, exceto o cadáver de Mademoiselle L’Espanaye, não havendo possibilidade de ninguém ter saído de casa sem que fosse pressentido pelas pessoas que subiram as escadas. A enorme desordem do aposento; o corpo introduzido, de cabeça para baixo, na chaminé; a terrível mutilação do cadáver da senhora idosa – todas essas considerações, aliadas às que acabo de me referir, bem como a outras que não é necessário mencionar, foram suficientes para paralisar as faculdades de raciocínio dos policiais, fazendo com que fracassasse a perspicácia de que se vangloriam. Cometeram o grande erro, embora comum, de confundir o incomum com o absurdo. Mas é por esses desvios do plano das coisas ordinárias que a razão encontra o seu caminho na investigação da verdade, caso isso seja possível. Em investigações como estas em que estamos empenhados, não se deve perguntar tanto ‘o que aconteceu’, mas sim procurar saber ‘se o que aconteceu jamais aconteceu antes’. De fato, a facilidade com que chegarei, ou já cheguei, à solução desse mistério está na razão direta de sua aparente insolubilidade aos olhos da polícia.

(‘Os Crimes da Rua Morgue’, 1841)


(Caso raro de autor que se dá bem tanto no conto – sua grande especialidade, como demonstram os trechos acima –, no romance – escreveu um só, ‘O Relato de Arthur Gordon Pym’, e isso basta – e na poesia – o sensacional ‘O Corvo’ é um deles –, o genial Edgar Allan Poe, geralmente conhecido pelo horror de suas narrativas e por ser o pai espiritual do romance policial e pela personalidade atormentada, teve o azar de, em seu tempo, a criação literária não encher a barriga de ninguém: como não havia uma lei internacional que regulasse os royalties, os editores americanos preferiam piratear trabalhos de escritores ingleses a apostar em novos autores de seu país. Mesmo assim, Poe decidiu tentar viver só da escrita, tendo de contar com a caridade alheia para sobreviver. Some-se a isso uma infância marcada pelo abandono do pai e a morte prematura da mãe, a natureza rebelde que cedo já se formava, o subsequente desacerto com o tutor, a expulsão da carreira militar ... tudo foi confluindo para um desregramento selvagem daí para o alcolismo, e então a morte, precoce, aos 40 anos, em 7 de outubro de 1949, em circunstâncias ainda hoje incertas: o que se sabe é que Joseph W. Walker, o homem que o achou quatro dias antes, delirando nas ruas de Baltimore, apenas relatou que Poe estava "em grande aflição, necessitando assistência imediata". O que ficou para a história foi que suas últimas palavras teriam sido "Senhor, ajude minha pobre alma", mas nem isso é confirmado. O boletim médico fala em "inflamação cerebral", o que se costumava registrar quando se queria dizer que o sujeito morreu por um distúrbio qualquer ligado à dependência alcólica. Tempos depois, várias especulações surgiram: sífilis, cólera, epilepsia, raiva. O que, claro, só fez aumentar o mito em torno de sua figura nas décadas subsequentes – é manjada aquela história do sujeito misterioso que todo ano depositava uma rosa negra e uma garrafa de vinho em seu túmulo, em Baltimore. Mas voltando à obra, vale prestar atenção ao que escreveu Dostoiévski no primeiro número de sua revista ‘O Tempo’, que trazia três contos de Poe – o texto tá no prefácio à edição de ‘O Relato de Arthur Gordon Pym’ pela CosacNaify:

"Este é um escritor particularmente estranho – isso mesmo, estanho, embora de grande talento. Não se pode classificar suas obras imediatamente como fantásticas; mesmo quando parece fantástico, ele o é apenas de forma exterior. Admite, por exemplo, que uma múmia egípcia, jazendo há cinco mil anos nas pirâmides, reviva pelo galvanismo. Admite, de novo por obra do galvanismo, que um morto relate o estado de sua alma etc. etc. Mas isso não constitui ainda o gênero autenticamente fantástico. Edgar Poe apenas admite a possibilidade externa de um acontecimento sobrenatural (aliás, provando sua possibilidade, às vezes de forma extremamente engenhosa) e, tendo admitido esse acontecimento, mantém-se perfeitamente fiel à realidade em todo o restante. Não é esse o fantástico, por exemplo, de Hoffmann. Este personifica as forças da natureza em imagens: introduz em seus contos feiticeiras, espíritos e, às vezes, procura seu ideal fora do mundo terreno, em algum mundo extraordinário e superior, como se acreditasse na existência indubitável desse misterioso mundo mágico ... Seria o caso antes de chamar Edgar Poe não de escritor fantástico, mas de caprichoso. E que caprichos mais estranhos, que coragem nesses caprichos! Quase sempre toma a realidade mais extraordinária, põe seu herói na mais extraordinária situação externa ou psicológica, e, com que perspicácia, com que precisão surpreendente ele relata o estado de alma dessa pessoa! Além disso, em Edgar Poe há justamente um traço que o diferencia de forma decisiva de todos os outros escritores e constitui a sua peculiaridade marcante: a força da imaginação. Não que ele tenha superado outros escritores pela imaginação; mas há uma peculiaridade em sua imaginação que não encontramos em ninguém mais: a força dos detalhes. Tentem imaginar, por exemplo, algo de incomum ou até de inexistente, mas meramente possível; a imagem que que se desenhará diante de vocês sempre conterá traços mais ou menos gerais do quadro ou se deterá em alguma particularidade, em algum detalhe. Mas nos contos de Poe vocês vêem intensamente todas as minúcias da imagem ou do acontecimento apresentados, a tal ponto que finalmente acabam por se convencer da sua possibilidade ou realidade, quando na verdade esse acontecimento é praticamente possível ou jamais aconteceu neste mundo".

NOTA FINAIS de CM: 1) os contos resumidos lá no início estão na coletânea ‘Histórias Extraordinárias’, publicada pela editora Abril no longínquo 1978 – trata-se basicamente da versão nacional da edição francesa, publicada por Baudelaire. Obviamente esgotada, os contos, contudo, podem ser encontrados nas edições pocket da L&PM, ‘Os Crimes da Rua Morgue’ e ‘A Carta Roubada’; 2) Está previsto um filme sobre seus controversos últimos dias, com direção de James McTeigue, realizador de ‘V de Vingança’. O ator que encarnará o escritor não está definido, mas a película deve chamar-se ‘The Raven’ – ‘O corvo’. O especialista em horror Clive Barker e – ai! – Sylvester Stallone tiveram a mesma ideia e já trabalham nela também; 3) como parte das comemorações do bicentenário de nascimento do autor – nasceu em 1809, no dia 19 de janeiro –, a prefeitura de Baltimore, onde faleceu, promoveu um evento simbólico no final de semana passado, realizando algo que Poe não teve em vida: uma pomposa cerimônia funeral.)









Poe, o senhor das trevas, que há 160 anos (07/10/1849) desencarnava: o homem que nos faz acreditar no inacreditável (e temê-lo profundamente)

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