sábado, 6 de junho de 2009

Assim foi escrito (8) – Eugènie Grandet (Honoré de Balzac)

Com maior conhecimento, a gente antiga da região achava que, sendo os Grandet demasiado cautos para deixarem sair da família os seus bens, a senhorita Eugènie Grandet, de Saumur, se casaria com o filho do senhor Grandet, de Paris, um rico negociante de vinhos por atacado. A isto respondiam os cruchotinos e os grassinistas:

- Para começar, os dois irmãos não se viram duas vezes nestes trinta anos. E depois, o senhor Grandet de Paris tem altas pretensões para o filho. É prefeito de um distrito, deputado, coronel da guarda nacional, juiz do tribunal de comércio; renega os Grandet de Saumur e pretende aliar-se a alguma família ducal pela graça de Napoleão.


...

A grande Nanon era talvez a única criatura humana capaz de aceitar o despotismo daquele amo. Toda a cidade invejava o senhor e a senhora Grandet por causa dela. A grande Nanon, assim chamada graças à sua estatura de cinco pés e oito polegadas, pertencia a Grandet havia trinta e cinco anos. Embora tivesse um ordenado de sessenta libras apenas, passava por uma das empregadas mais ricas de Saumur. Aquelas sessenta libras, acumuladas ao longo de trinta e cinco anos, haviam-lhe permitido recentemente colocar quatro mil libras a render juros com mestre Cruchot. Esses resultados das longas e persistentes economias da grande Nanon pareceu gigantesco. Cada empregada, vendo que a pobre sexagenária garantiria o pão da velhice, tinha-lhe ciúmes, sem pensar na dura servidão pela qual o ganhara.

Na idade de vinte e dois anos, a pobre criatura não arranjava nenhum emprego, tanto seu aspecto era repelente; essa impressão, aliás era muito injusta: aquelas mesmas feições seriam dignas de admiração sobre os ombros de um granadeiros da guarda; mas tudo, como se diz, deve ter o seu propósito. Forçada a abandonar uma granja incendiada, onde cuidava das vacas, veio para Saumur à procura de serviço, animada por aquela robusta coragem que não se recusa a nada.

O senhor Grandet pensava na ocasião em casar-se, e já queria montar casa. Reparou naquela moça, rejeitada de porta em porta. Sabendo avaliar a força corporal, na sua qualidade de tanoeiro, adivinhou o partido que podia tirar de uma criatura fêmea talhada como um Hércules, plantada sobre os pés como um carvalho sexagenário sobre suas raízes, forte de ancas, quadrada de ombros, com mãos de carreteiro e uma probidade tão rigorosa como a sua intacta virtude. Nem as verrugas que ornamentavam aquele rosto marcial, nem a tez cor de tijolo, nem os braços nervosos, nem os trapos de Nanon assustaram o tanoeiro, que ainda estava na idade em que o coração estremece. E, em conseqüência, vestiu, calçou, alimentou a pobre rapariga, deu-lhe um ordenado e a empregou, sem maltratá-la muito.

Vendo-se acolhida dessa maneira, a grande Nanon chorou secretamente de alegria e, com toda a sinceridade, apegou-se ao tanoeiro, que, aliás, a explorou feudalmente.”


...

A senhora Grandet era uma mulher seca e magra, amarela como um marmelo, desajeitada, lerda; uma dessas mulheres que parecem feitas para ser tiranizadas. Tinha ossos grandes, um nariz grande, testa grande, olhos grandes e oferecia, ao primeiro aspecto, uma vaga semelhança com essas frutas fiapentas que não têm nem sabor nem suco. Seus dentes eram escuros e raros, sua boca enrugada, seu queixo tinha a forma dita de galocha. Era uma excelente mulher, uma verdadeira La Bertellière. O abade Cruchot sabia encontra ocasiões para dizer-lhe que não tinha sido feia, e ela acreditava. Uma doçura angélica, uma resignação de inseto judiado pelas crianças, uma piedade rara, um inalterável equilíbrio de gênio, um bom coração, fizeram-na universalmente lastimada e respeitada.

(Um das 88 narrativas – entre romances e novelas curtas – que compõem a magistral ‘A Comédia Humana’, Eugènie Grandet, originalmente publicado em 1833, inaugura as ‘Cenas da Vida Provinciana’, que, por sua vez, está contida em um das três subdivisões d’A Comédia, ‘Estudos de Costumes’ – as outras são ‘Estudos Filosóficos’ e ‘Estudos Analíticos’. Um dos mais aclamados romances de HONORÉ DE BALZAC, ‘Eugènie’ conta a história de uma típica família burguesa do interior, e por tabela, faz um retrato da sociedade francesa da época: o patriarca, senhor Grandet, ex-toneleiro, ao casar herda a fortuna da mulher, e acaba tornando-se um bem sucedido vinhateiro. Um belo dia, um sobrinho vindo de Paris, Charles, aparece em sua casa. É filho do irmão do Sr. Grandet, que, em função das dívidas, acaba de suicidar-se. O Sr. Gandet inicialmente o acolhe, mas pensa no sobrinho apenas como uma boca a mais a alimentar. O sobrinho e Eugènie, filha do Sr. Grandet, se apaixonam, mas para o velho, expressão máxima da avareza, tudo é negócio, e ele não imagina outro destino para a filha que não o casamento com alguém igualmente de posses, pra que a fortuna se multiplique – e a essas alturas, Eugènie já é disputada por duas famílias da região. Balzac, nascido em 20 de maio de 1799 em Tours, teve que fazer um trato com a família para dedicar-se à sua vocação de escritor: tendo formado-se em Direito, com três anos de profissão chegou à conclusão que muito mais produtivo seria lançar-se aos relatos ficcionais do que vira nos tribunais – as intrigas, as negociatas, os conchavos –, mas a família foi contra. Então ele propôs que a família o sustentasse por um ano e se a nova atividade não lhe trouxesse autonomia financeira, voltaria a advogar. Dedicou-se, então, à leitura dos clássicos, mas no período combinado, escreveu apenas uma tragédia para o teatro. Mostrou-a a seu professor de literatura, e a resposta, cruel e lacônica, foi: “faça qualquer coisa, menos literatura”. Mas Balzac não desistiu: como o sucesso da época eram os romances sentimentais, ele publicou algumas histórias do tipo, em jornais e revistas, e aos poucos foi encontrando o caminho do sucesso, ao passo que ia distanciando-se da escrita folhetinesca, forjando seu estilo realista e compondo grandes painéis da burguesia de seu tempo. Balzac vivia para a literatura: chegava a escrever por até 20 horas por dia, turbinado por litros e litros de café, o que deve ter contribuído bastante para sua vida curta: morreu em 1850, em Paris, com 51 anos, três meses depois de se casar com Madame Hanska, uma rica polonesa com quem se correspondeu por mais de 15 anos. Victor Hugo discursou no seu enterro. Em frente a seu túmulo, há uma estátua esculpida por Rodin. Deixou ensaios, peças de teatro, poesia, panfleto, mas o filé de sua obra mesmo é ‘A Comédia Humana’, que embora irregular – sabe como é, o cara escrevia rápido demais –, deixou romances clássicos como ‘A Menina dos Olhos de Ouro’, ‘A Pele de Onagro’, ‘A Prima Bette’, ‘Esplendor e Miséria das Cortesãs’, ‘Ilusões Perdidas’, ‘O Coronel Chabert’, ‘O Pai Goriot’, ‘O Primo Pons’. Chegou a ser aclamado em vida mas obteve mesmo o reconhecimento unânime como um dos maiores nomes da literatura de todos os tempos depois de morto. Otto Maria Carpeaux, gigante da crítica literária, chega a dizer que “a história do romance como gênero literário divide-se em duas épocas: antes e depois de Balzac”. A obra de Balzac, editada no Brasil primeiramente pela Editora Globo com tradução e notas de Paulo Rónai, outro bambambam da crítica, vem sendo relançada pela L&PM, que promete disponibilizar toda ‘A Comédia Humana’ (‘A Menina dos Olhos de Ouro’, ‘A Pele de Onagro’, ‘Esplendor e Miséria das Cortesãs’, ‘Ilusões Perdidas’, ‘O Coronel Chabert’ – seguido de ‘A Mulher Abandonada’ –, ‘O Pai Goriot’, ‘Estudos de Mulher’, ‘Ferragus’, o popular ‘A Mulher de Trinta Anos’ – que popularizou a expressão “balzaquiana” –, ‘O Lírio do Vale’, ‘A Duquesa de Langeais’ e ‘A Vendeta’ – seguido de ‘A Paz Conjugal’ – já saíram), mas boa parte dela está disponível digitalmente através do Projeto Gutenberg).


Balzac por Rodin: se tivesse ouvido a família ou seguido o conselho de seu professor, o mundo jamais teria conhecido a monumental 'A Comédia Humana'

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