sexta-feira, 15 de maio de 2009

Woody brincando de Fellini de volta às locadoras

Já tava quase mandando mais uma edição do ‘Um dia, numa locadora perto de você’, dedicada aos filmes – todos bacanas, alguns memoráveis – do Woody Allen ausentes desde há muito nas prateleiras das nossas "video shops and rentals", quando me deparei com o lançamento (atrasado, muito atrasado, mas sempre bem vindo) de três pérolas do novaiorquino que até a pouco tempo só eram encontráveis em locadoras que possuem acervos de fitas VHS. São três filmes dos anos 80, três comédias com aquele toque de melancolia característico da maturidade de Woody, alcançada após ‘Annie Hall’ e ‘Manhattan’, em que a influência de um de seus mestres europeus, Federico Fellini, é evidente. Esses filmes não só não perderam nada com o passar do tempo, como, vinte e poucos anos após seus lançamentos, até ganharam um charme extra. Vamos por ordem cronológica:

‘MEMÓRIAS’ (‘STARDUST MEMORIES’, 1980)
Feito logo depois de um dos clássicos de sua filmografia (‘Manhattan’, de 1979), é visivelmente inspirado em ‘8 ½’, de Fellini. Woody faz Sandy Bates, um cineasta em crise existencial, indeciso entre várias mulheres – a francesa cheia de vida Isobel (Marie-Christine Barrault), a confusa Daisy (Jessica Harper), além da memória culpada pelo fim do relacionamento com a atormentada Dorrie (Charlotte Rampling, a própria cara da perturbação psíquica) – e tentando equilibrar-se entre a vontade de fazer filmes de acordo com suas convicções, as pressões dos produtores e do mercado e a expectativa do público. Começa com uma cena alegórica, com um trem lotado de personagens estranhos (fellinianos?) – entre eles uma pin-up feita pela então estreante Sharon Stone –, que vai encerrar seu trajeto num lixão. Logo após projetada em um estúdio, a cena é detonada pelo produtores da película, que querem suavizar a coisa, o que dará, mais adiante, a deixa para uma daquelas tradicionais e divertidas observações alleneanas:

Sandy: "O que é isso? Que diabos é isso? É a coisa mais idiota que já vi! O que é isso? Essas pessoas que estão marchando ao fundo, elas estavam no trem e acabaram no depósito de lixo. O que estão fazendo?"
Produtor: "Elas vão para o paraíso do jazz. É comercial, é otimista."
Sandy: "É idiota."
Produtor (outro): "Pensei que você fosse gostar, Sandy. Você adora jazz."
Sandy: "Quem é esse cara, pra reescrever o final do meu filme? E desde quando esses caras estão envolvidos? O que está havendo?"
Produtora: "Eles são os chefes do estúdio."
Sandy: "Como? ... A cada seis meses, conheço novos chefes de estúdio!"
Produtora: "Eu também fico confusa. Mas a taxa de mortalidade desse ramo é inacreditável!"
Sandy: "Nem me fale! Parece a peste negra! Meu Deus! ... Eu não quero ninguém indo para o paraíso do jazz. Isso é uma ideia maluca! A mensagem principal do meu filme é que ninguém se salva!"
Produtora: "Sandy, o filme será lançado na Páscoa, não queremos um filme de um ateu".
Sandy: "Pra você, eu sou ateu; pra Deus, sou a leal oposição".

Assim como esse diálogo, há uma infinidade de tiradas antológicas do cara. Trata-se de um dos filmes de Allen com texto mais afiado, e aí o mote pode ser qualquer coisa: o encontro com uma veterana atriz que trabalhou com Sandy anos antes, e faz questão de relacionar todas as cirurgias plásticas que fez ("fiz meu rosto, meus seios, fiz o bumbum. Coloquei próteses de silicone, dei umas esticadas", ao que ele devolve: "Isso é mais obra do que estão fazendo na rodovia West Side"); pode ser a resposta à pergunta de alguém da platéia de uma palestra sua logo após a exibição de um de seus filmes, sobre se ele estudou Filosofia ("Não, não é verdade. Eu fiz um curso de Filosofia Existencial na Universidade de Nova Iorque, e, no final, eles me deram dez perguntas e eu não consegui responder nenhuma. Deixei tudo em branco. Tirei nota máxima"); ou as doenças da família de Dorrie ("A sua mãe foi diagnosticada com o quê? Esquizofrenia?", pergunta Sandy. Ela responde que "Ela era esquizofrênica, era depressiva ...", ao que ele devolve: "Entendo. O manual de psiquiatria completo ... é engraçado, na minha família, ninguém se suicidou, ninguém. Não era uma alternativa para a classe média, sabe? Minha mãe estava ocupada demais passando o frango pela máquina de tirar o gosto para pensar em se matar ou algo parecido").

Memórias’, no todo, pode não ser tão bem-sucedido quanto ‘Manhattan’ ou ‘Noivo Neurótico, Noiva Nervosa’, seus predecessores que tanto chamaram a atenção da crítica e dos cinéfilos da época, colocando definitivamente o nome de Woody Allen no panteão dos grandes autores do cinema americano, mas pela coleção de pérolas que contém é tão imperdível quanto estes. Vemos filmes, às vezes menores, de Allen e gostamos só por sua presença, pelo inusitado ponto de partida da história (um diretor independente que volta a trabalhar em Hollywood e vai ficando cego durante a realização de seu novo filme sem que ninguém no estúdio perceba, como ‘Dirigindo no Escuro’, ou o escritor fora de foco, em ‘Desconstruindo Harry’) ou por conta de uma ou duas observações cínicas. Quando há várias, então ...


‘BROADWAY DANNY ROSE’ (1984)
Começa com vários agentes artísticos em volta de uma mesa rememorando as histórias de um colega (o Danny Rose do título), um sujeito perdedor, que, entre outros representados, tem "um maravilhoso xilofonista cego, um papagaio que canta ‘I got to Be Me’, e ótimos moldadores de balões". Quando Danny descobre alguém de relevo, este o abandona quando começa a tornar-se um sucesso. O cantor ítalo-americano Lou Canova (Nick Apollo Forte), instável, beberrão e que divide-se entre a mulher e amante, Tina, vivida por Mia Farrow, está por baixo quando Danny começa a empresariá-lo, mas aos poucos vai chamando a atenção de figuras como o lendário comediante Milton Berle (o próprio aparece no filme), presente a uma apresentação do cara no mítico Waldorf. Qual será a atitude de Canova quando passar a ter mais visibilidade? Rose, é claro, vai seguir sendo fiel a seus artistas menores até o fim.

Dá pra dizer que tem um quêzinho de ‘As Noites de Cabíria’ aqui: a inocência e pureza d'alma da personagem de Allen fazem dele um inevitável loser, mas há a compensação. Lembra também outra característica de ‘Cabíria’, um comentário feito por François Truffaut sobre o cinema de Fellini, em especial o drama da ingênua prostituta imortalizada por Giulietta Masina: é irregular, sem dúvida, mas vale por momentos. Grandes momentos, aliás. ‘Danny Rose’ vem depois de ‘Zelig’ (1983) e antes de ‘A Rosa Púrpura do Cairo’ (1985), dois dos mais inventivos filmes de Allen do período e foi injustamente subestimado. Merece revisão urgente. Como curiosidade, um dos agentes de Allen, Jack Rollins – seu nome, junto ao de Charles Joffe, consta dos créditos de literalmente todos os filmes de Woody – faz uma ponta como um dos caras que se diverte com as histórias de Danny, na cena inicial, ambientada na Carnegie Deli.

‘A ERA DO RÁDIO’ (‘RADIO DAYS’, 1987)
O ‘Amarcord’ de Allen, que recorda sua infância através dos programas de rádio que uma pitoresca família, tipicamente da classe trabalhadora, residente na área de Rockway Beach, em Nova Iorque, acompanha nos 30 e 40, a era de ouro do rádio. A sequência de abertura já é antológica: dois ladrões atrapalhados invadem a casa de uma família que saiu pra assistir ao show de um popular programa de auditório de perguntas e respostas - cujo apresentador liga justamente pra casa assaltada (!). E um dos bandidos atende (!!). E acerta todas as perguntas, levando o prêmio principal (!!!). No outro dia, a casa modesta, toda revirada, é presenteada com uma mobília inteiramente nova, que um caminhão faz descarregar.

Mas tudo gira em torno da família judia do ruivinho Joe (Seth Green), evidente alter ego de Woody neste belo e engraçado filme nostálgico: boletins de guerra – inclusive a notícia do bombardeio a Pearl Harbor –, radionovelas – o Vingador Mascarado era o herói do garoto, mas mal ele desconfiava que o ator que o representava (Wallace Shawn, no filme) era baixinho e careca – e momentos-chave da radiodifusão, como na divertida cena em que a tia encalhada de Joe, Bea (a excelente Dianne Wiest), sai com um pretendente que foge apavorado, bem naquela hora, ao escutar no rádio do carro a famosa dramatização de ‘A Guerra dos Mundos’ por Orson Welles, acreditando que a Terra realmente está sendo invadida por marcianos malvados. Além da personagem de Wiest, destaque pra Mia Farrow como Sally, vendedora de cigarros em um nightclub que sonha em ser estrela de rádio, embora sua voz não seja exatamente apropriada para a função.

A Era do Rádio’ sucede ‘Hannah e Suas Irmãs’ (1986), um dos melhores filmes de Allen, e antecede os sisudos ‘Setembro’ (também de 1987) e ‘A Outra’ (1988), e é o único dos três em que Allen não trabalha como ator – ele apenas narra a história. Dos três do pacote, é sem dúvida o melhor. Como curiosidade adicional, a(s) presença(s) brasileira(s): Denise Dumont (lembra?) aparece cantando ‘Tico-Tico no Fubá’, e no aparelho de rádio da casa do pequeno Joe uma das músicas que mais fazem sucesso – com direito a coreografia e dublagem dos pais e tios – é ‘South American Way’, hit de Camen Miranda. Outra curiosidade: numa rápida ponta, Jeff Daniels, astro de ‘A Rosa Púrpura do Cairo’, aparece no final como Biff Baxter, o galã que fazia o personagem que saía da tela no filme dentro daquele filme pra viver um romance com a sofrida personagem de Mia Farrow.

Mesmo que seja altamente louvável a reposição destes três títulos nas locadoras, é um crime a ausências de vários trabalhos mais conhecidos do cara ainda hoje nas prateleiras: o primeiro filme de fato dirigido por ele, ‘Um Assaltante Bem Trapalhão’, o sombrio ‘Setembro’, o singelo ‘Simplesmente Alice’, o curioso ‘Neblina e Sombras’, o polêmico ‘Maridos e Esposas’, os divertidos ‘Um Misterioso Assassinato em Manhattan’, ‘Tiros na Broadway’ e ‘Poderosa Afrodite’, o original ‘Todos Dizem Eu Te Amo’, o ótimo ‘Desconstruindo Harry’ ... Até pra aproveitar o momento de nova visibilidade que a carreira de Allen vive hoje em dia, desde o avassalador sucesso de ‘Match Point’, o mais lucrativo de seus filmes, e ‘Vicky, Cristina, Barcelona’. O ótimo livro de entrevistas de seu amigo/biógrafo Eric Lax, ‘Conversas com Woody Allen’ (tema de um post recente por aqui), cuja primeira edição, no final do ano passado, esgotou em apenas duas semanas, é o segundo mais vendido de todo o catálogo da editora CosacNaify (era o primeiro até pouco tempo).

Woody, firme e forte aos 73 anos, tem novo filme em breve pintando por aqui: ‘Whatever Works’ abriu o Tribeca Film Festival em 22 de abril e tem estréia no circuito comercial americano marcada para 19 de junho. Trata-se de uma comédia daquelas meio bitter de Allen, que tem como protagonista mais um loser, Boris Yellnikov (Larry David), que depois de ter a carreira de professor universitário fracassada, de ter sido abandonado pela mulher e ter tentado o suicídio, ocupa seu tempo insultando as pobres crianças a quem ensina a jogar xadrez e irritando os poucos amigos que lhe restaram, com tiradas inconvenientes sobre tudo e teses sobre a falta de sentido da existência humana e o caos humano. Uma bela noite, ao voltar pra casa, dá de cara com Melody (Evan Rachel Ward, a filha de Mickey Rourke em ‘O Lutador’), uma garota sulista assustada, com fome e frio que pede pra ficar ali aquela noite. Meio contra a vontade, ele aceita, e ela, que, ingênua, leva ao pé da letra todos os comentários sarcásticos que ele faz, vai ficando, ficando, até que ... ‘Whatever Works’ marca a volta de Woody Allen a seu cenário cativo: é seu primeiro filme rodado em Nova Iorque desde ‘Melinda & Melinda’ (2005). Seu trabalho seguinte, porém, prometido pra 2010, será rodado de novo em Londres, onde se deu bem com ‘Match Point’, ‘Scoop’ e ‘O Sonho de Cassandra’. A produção ainda não tem nome, mas o elenco é estelar: Antonio Banderas, Josh Brolin, Anthony Hopkins, Naomi Watts, Nicole Kidman, e a estrela de ‘Quem Quer Ser um Milionário?’, Freida Pinto.

O momento só não é melhor porque de novo o cara tá envolvido numa batalha judicial: há um ano, entrou contra uma empresa de roupas por uso indevido de sua imagem – em um anúncio, ele aparecia caracterizado como judeu hassídico, usando barba e chapéu. Além de usar sua imagem sem o necessário consentimento, em outdoors em L.A. e Nova Iorque e propagandas em sites na internet, a empresa ainda apresentou uma lista de possíveis testemunhas que inclui a mulher de Allen, Soon-Yi, e a ex, Mia Farrow, o que seus advogados, claro, entenderam como clara tentativa "brutal de caluniar e intimidar Woody Allen", o que "demonstra a intenção inconfundível de transformar este julgamento num espetáculo". Na tal lista, ainda constam os nomes de Letty Aronson, irmã de Woody, e do fanfarrão Larry Flynt – ele mesmo, o dono da Hustler Magazine (?!). Woody e seus advogados, que pedem 10 milhões de dólares na ação, querem impedir a convocação destas testemunhas. A empresa diz que "Woody superestima o valor de sua imagem, depois de ele ter se envolvido em vários escândalos sexuais (?!?!?!?!?!)". Allen, como se sabe, envolveu-se com sua mulher Soon-Yi, filha adotiva da ex, Mia Farrow, em 1992 - estão juntos há 19 anos, portanto -, o que deu margem a um escândalo de proporções gigantescas e uma verdadeira farra da imprensa marrom, alimentada ainda por acusações cruéis por parte de Mia. Woody casou-se com Soon-Yi em 1997. O julgamento está marcado pra próxima segunda-feira, dia 18.

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