"A terra parecia extraterrena. Estávamos acostumados a vê-la sob a forma de um monstro acorrentado e domado, mas ali ... o que víamos ali era uma coisa monstruosa e livre. Era algo extraterreno, e os homens eram ... não, não era inumanos. E para falar com franqueza, essa era a parte pior ... a suspeita de que eles não eram inumanos. Essa desconfiança ia-se apossando aos poucos da nossa mente. Eles uivavam, saltavam, rodopiavam, faziam caretas medonhas ... mas o que impressionava a gente era precisamente a idéia de que eram criaturas humanas ... como nós, a idéia de que havia um remoto parentesco entre nós e aquele selvagem e delirante tumulto. Era terrível. Sim, realmente terrível, mas se fôssemos honestos teríamos que admitir que havia em nosso íntimo uma sombra de receptividade à tremenda autenticidade de toda aquela algazarra, uma vaga desconfiança de que havia nela um significado que nós – tão distante da noite dos primeiros tempos – estávamos capacitados a compreender. E por que não? A mente do homem é capaz de tudo, porque está tudo dentro dela, todo o passado, assim como o futuro. Que havia ali, afinal? Alegria, medo, tristeza, devoção, bravura, ira ... quem pode saber? Mas havia verdade ... uma verdade despida do seu manto do tempo. Os tolos observarão a cena boquiabertos, arrepiados; o homem genuíno saberá compreender e contemplará tudo sem pestanejar. Mas ele tem de ser pelo menos tão homem quanto aqueles que estão na margem do rio. Tem que opor àquela verdade sua própria essência ... a sua própria e inata força. Princípios de nada servem."
(O horror! O horror! O trecho acima é narrado por Marlow, um dos dois personagens principais do assustador ‘O Coração das Trevas’, de JOSEPH CONRAD, publicado em 1899 e conhecido nos últimos 30 anos principalmente por ter servido de base para o delirante ‘Apocalypse Now’, de Coppola, ambientado no Vietnã. A trama original passa-se no coração da selva africana: o inglês Marlow, a serviço de uma companhia belga que explora marfim, recebe a missão de subir o rio – cujo nome nunca é mencionado, mas acredita-se ser o Congo –, encontrar o principal fornecedor da companhia, que vive num canto remoto da selva como uma espécie de deus para os nativos, e trazê-lo de volta. Este sujeito é Kurtz, que quando embrenhou-se no meio do mato acreditava que tinha o dever de resgatar os selvagens daquele ambiente e trazê-los pra a civilização. Em pouco tempo, porém, em função do isolamento, do convívio com os selvagens e da inebriante sensação de fortuna e poder que alcança, perde todo e qualquer referencial ético e moral, acabando por transformar-se em um soberano do lugar, alguém que se julga acima do bem e do mal. Além da ansiedade criada pelo autor pela expectativa do encontro entre as duas personagens, a maior virtude do romance é a própria descrição da selva, quase um ser vivo e ameaçador, pronto pra engolir seus "hóspedes". Polonês, nascido no antigo império russo (na cidade de Berdiychiv, hoje território ucraniano), Józef Teodor Konrad Korzeniowski, naturalizado britânico pouco antes dos 30 anos, é um daqueles casos surpreendentes que só a vocação é capaz de explicar: tornou-se um dos principais escritores em língua inglesa de seu tempo sem ter aprendido a falar o idioma fluentemente antes dos 20. Muito da inspiração de sua obra veio da sua vivência na marinha mercante inglesa. Após ‘O Coração das Trevas’, publicou outro clássico, ‘Lord Jim’. É autor também de ‘Nostromo’, ‘A Flecha de Ouro’, 'Tufão', ‘O Agente Secreto’, que deu origem a ‘Sabotagem’, de Hitchcock, e da novela ‘Os Duelistas’, filmada por Ridley Scott.)
Conrad, já na melhor idade: um dos melhores romancistas em língua inglesa do seu tempo só foi ser fluente no idioma depois de adulto
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