quinta-feira, 7 de maio de 2009

Assim foi Escrito (4) - A Volta do Parafuso (Henry James)

"A revelação da maneira como Flora ficou atingida pelo que via me surpreendeu, em verdade, muito mais do que surpreenderia se ela se mostrasse agitada, pois uma demonstração direta de terror evidentemente não entrava nos meus cálculos. Preparada e posta na defensiva mercê da nossa perseguição, ela reprimia toda emoção capaz de a trair. Fiquei, por isso, muito abalada com o primeiro indício de uma atitude para mim inesperada. Sem ao menos fingir que olhava na direção do prodígio, que eu denunciava, mas, em vez disso, voltar-se para mim com uma expressão absolutamente nova e sem precedente, que parecia ler em mim, acusar-me julgar, sem que um só músculo se movesse no seu rostinho cor-de-rosa – tudo isso, de certa forma, convertia a meninazinha na própria presença que me podia levar a estremecer.

E estremeci, certo de que ela agora via como nunca antes; e impelida pela necessidade imediata de defender-me, apelei apaixonadamente para o seu testemunho:

- Ela está ali, infeliz criatura! Ali, ali, ali, e você sabe tão bem como eu!

Eu dissera pouco tempo antes a Mrs. Grose que, nesses momentos, Flora já não era uma criança, mas uma mulher velha, muito velha, e nada para confirmar de maneira mais evidente essa declaração do que o modo pelo qual, por toda resposta, ela simplesmente me apresentou, sem a menor concessão ou admissão, uma aitude de censura cada vez mais acentuada que, de súbito, se fixou inteiramente.

Nessa altura eu estava – se é que posso reunir os traços esparsos dessa cena – ainda mais horrorizada por aquilo que posso chamar com justeza de ‘seu jogo’ do que por todo o resto, se bem que, simultaneamente, eu tivesse percebido que agora Mrs. Grose estava indisfarçavelmente contra mim. Em todo caso, no momento, tudo se dissipou, para só me deixar sensível ao rosto congestionado e ao ruidoso protesto da minha velha companheira, onde explodia a sua violenta desaprovação:

- É possível ação mais horrorosa, miss? Onde diacho a senhora está vendo a mínima coisa?
"

(A VOLTA DO PARAFUSO, Henry James. Publicada em 1898, essa novela curta é daquelas obras em que as expressões que se usam para qualificar-lhe o gênero – "literatura fantástica" e "romance gótico" são as mais manjadas –, são insuficientes. As interpretações à obra, uma das mais conhecidas de James – também autor de ‘Retrato de Uma Senhora’, ‘Daisy Miller’, ‘Um Incidente Internacional’, ‘Washington Square’, ‘A Taça de Ouro’ –, são as mais variadas. A história, contada em primeira pessoa por um narrador desconhecido que lê um manuscrito de uma governanta já falecida, refaz a convivência dessa preceptora com duas crianças órfãs, Miles e Flora, por quem o tio, um homem rico porém durão, sente-se responsável, mas com quem não quer maior contato. Assim, a governanta obtém carta branca para educar a dupla, que vive em uma grande casa de campo. Tudo vai bem até que Miles é expulso do colégio – o garoto não toca no assunto, mas ela desconfia que há algo muito sério por trás. Pouco depois, duas estranhas criaturas passam a frequentar os jardins da casa, aparentemente sem que ninguém perceba a não ser a governanta, e logo ela vai saber que, antes de trabalhar ali, Miss Jessel, sua antecessora, e o amante, Peter Quint, morreram sob circunstâncias misteriosas. Ela continua a ter visões do casal, enquanto todos os outros ocupantes da casa ignoram sua suposta presença, e então passa a desconfiar que as crianças lhe mentem quando dizem que não vêem nada. Há quem faça uma leitura freudiana da trama (os fantasmas estão só na cabeça da protagonista); há quem veja implicações sócio-políticas (seria uma metáfora ao imperialismo britânico, já que na introdução há referências à Índia; ao opressor sistema patriarcal – as visões da governanta seriam uma reação maníaca à maneira com que foi criada pelo pai; à repressora era vitoriana – o romance foi publicado no finalzinho do período: a preceptora começa a perturbar-se à medida que toma conhecimento do relacionamento picante e sem amarras do casal de falecidos); e há também quem simplesmente veja a história como um tradicional conto de fantasmas, uma vez que, além de grande apreciador do gênero, nos diários de James há apenas uma menção à intenção inicial de trabalhar ficcionalmente um "causo" que ouviu certa vez do arcebispo de Canterbury. O certo é que ‘A Volta do Parafuso’ é daquelas histórias envolventes, que prendem da primeira à ultima página. Teve várias versões para a TV e o cinema – a mais conhecida, o ótimo ‘Os Inocentes’, de Jack Clayton, de 1961, com a soberba Deborrah Kerr no papel principal – e é referência pop até hoje – em uma cena de ‘Lost’ em que a escotilha está prestes a explodir porque os números não foram digitados no sistema a tempo, o escocês perturbado Desmond diz para que alguém aperte, um botão de segurança escondido atrás de uma prateleira. Em que lugar? "Ali, bem atrás de ‘A Volta do Parafuso’". O americano de nascimento e inglês de adoção Henry James (1843-1916), um dos nomes da literatura do século XIX – não só em língua inglesa – era de uma família de notáveis: seu irmão, o filósofo William James, é o pai da psicologia americana; a irmã, Alice, notabilizou-se pelos seus diários, publicados postumamente, cheios de argutos comentários sobre a sociedade inglesa de sua época, e acabou virando uma espécie de ícone feminista; e o pai, Henry James Sr., foi conhecido teólogo.)

Clássica história de fantasmas de James, 'The Turn of the Screw' foi parar até no 'Lost'

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