"Nem todos os mestres podem ter bons servidores. Já tereis visto por aí sujeitos obsequiosos, de flexíveis joelhos que, apaixonados pela própria escravidão, o tempo todo gastam com o asno do amo, só pela comida, e, ficando velhos, são despedidos. Chicote nessa gente honesta! Outros há que o coração conservam sempre atento no proveito pessoal, e aos amos dispensam mostras de serviço, apenas prosperam bem e ao tempo que os casacos lhes foram, a si próprios prestam boa homenagem. Esses tipos têm alguma alma, e entre eles eu me incluo, posso afiançar-vos. Pois, senhor, tão certo como serdes Roderigo, se em verdade eu fosse o mouro, não quereria um Iago sob minhas ordens, pois seguindo-o apenas sigo a mim mesmo. O céu é testemunha, não me move o dever nem a amizade, mas, sem o revelar, só o interesse. Se as mostras exteriores de meus atos me traduzissem os motivos próprios do coração em traços manifestos, carregaria o coração na manga para atirá-los às gralhas. Ficai certo, não sou o que sou".
(Iago, o patife-mor da obra shakespereana, explicando sua filosofia de vida em ‘OTELO’, na versão de Orson Welles lançada em 1952. Michael McLiammoir, o excelente ator britânico que o interpreta, fez apenas cinco filmes – entre eles, ‘As Aventuras de Tom Jones’, de Tony Richardson, e ‘Carta ao Kremlin’, de Huston. A história, pra quem não conhece, gira em torno da inveja: o soldado Iago, revoltado por ser preterido em nome de Cássio para uma promoção por Otelo, o general mouro do exército de Veneza, trama um romance fictício entre a amada de Otelo, a doce Dedêmona, e o agora tenente Cássio, com base em supostas evidências que ele mesmo inventa. A trágica história de preconceito, ciúme, inveja e traição tem no seu ardiloso vilão um dos personagens mais desprezíveis de todos os tempos, e que só tem rival à altura em termos de total ausência de limites morais na obra shakespereana na igualmente maquiavélica Lady Macbeth – a diferença é que ela age por ambição desmedida, enquanto que Iago não tem ambição alguma a não ser a ruína alheia: assume-se um réptil, é uma criatura inferior e sabe disso. Welles, profundo conhecedor da obra do bardo – recitava grande quantidade de versos em sua adolescência e atuou numa companhia shakespereana em Dublin com apenas 21 anos –, além de ‘Otelo’, filmou ainda uma versão de ‘Macbeth’ – com orçamento tão minguado que a pobreza dos cenários cenários teve de ser disfarçada – e ‘Falstaff’'/'Chimes at Midnight’ – que pega emprestadas cenas de vários textos de Shakespeare em que aparece o beberrão Sir John Falstaff, braço direito do jovem Henrique V. Também interpretou o ‘Rei Lear’ para a TV. Virou clichê dizer que a maioria dos filmes – se não todos – do cineasta americano tem um quê de Shakespeare, de ‘Cidadão Kane’ a ‘A Marca da Maldade’, de ‘The Stranger’ a ‘A Dama de Shangai’. Tamanha intimidade com a obra do dramaturgo inglês – isso sem falar na capacidade superior de Welles como cineasta – permitiu-lhe certas liberdades: o diálogo acima, por exemplo, embora encaixe-se perfeitamente à podridão da personagem, não consta do texto original, é criação de Orson. A história da produção, por sua vez, é tão lendária quanto o filme: como levou quatro anos pra ficar pronta – começou em 1948 –, várias falas tiveram de ser refeitas. Como os atores nem sempre estavam disponíveis pra refazê-las, coube ao próprio Welles a dublagem – de vários presonagens. Welles filmava às vezes contando com uma grana que não havia certeza se viria – e em outras vezes, quando vinha, ele, o elenco e a equipe torravam tudo em festões de arromba. Além disso, três atrizes diferentes foram usadas pra fazer Desdêmona. Mas a recompensa veio mesmo assim: com locações em Roma, Veneza, na Toscana e também no Marrocos, movimentos de câmera prodigiosos, performances de primeira de todo o elenco e os costumeiros dribles na pobreza do orçamento de Welles, ‘Otelo’ levou a Palma de Ouro de melhor filme em Cannes em 1952.)
Otelo dando ouvidos ao pústula Iago: isso vai custar muito caro
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