Entre meados das décadas de 80 e 90, o britânico Adrian Lyne era um dos diretores mais populares do cinema. Um dos tantos cineastas da época egressos da publicidade (Ridley Scot, Alan Parker), seus filmes, invariavelmente, viravam sucessos de bilheteria, tirando proveito, sobretudo, da então nascente estética videoclípica (‘Flashdance’), de referências a clássicos da controvérsia (‘9 ½ Semanas de Amor’ claramente se pretendia um ‘O Último Tango em Paris’ da era yuppie), tramas apelando para o sencionalismo mais canhestro (‘Atração Fatal’, que até lhe rendeu uma absurda indicação ao Oscar de direção, num tempo em que a Academia era ainda mais sem noção do que é hoje) e polêmicas baratas como a de ‘Proposta Indecente’. Um oportunista vulgar, bem a cara tacanha do mauricismo reinante naqueles dias, mas esperto o suficiente pra fazer dinheiro à custa de polêmica, geralmente relacionada ao trinômio sexo/amor/poder. O tempo de Lyne passou – sua adaptação de ‘Lolita’, apesar de mais picante que a contida versão Kubrickiana, naufragou completamente, e seu último trabalho, ‘Infidelidade’ (o cara apela ou não apela?), já faz sete anos que foi lançado - mas seu trono no panteão de grande fraude do cinemão hoje é ocupado, coincidentemente, por um compatriota. Só que um verniz cult, pretensioso, e chinfra de auteur. Esse inclusive engana mais gente, até cinéfilos juramentados e críticos renomados.
Sam Mendes, natural de Reading e descendente de portugueses, fez respeitada carreira teatral, nos dois lados do Atlântico (incluindo o West End londrino, a Royal Shakespeare Company e a Broadway), até estrear nas telas com ‘Beleza Americana’ (1999), que logo cativou a indústria e a crítica especializada, ganhando status de obra-prima da década, terminando por 5 arrebatar Oscars, entre eles o de direção. Desde então, é nome do primeito time da indústria, daqueles que pouquíssima gente ou ninguém contesta. Mui humildemente, me apresento pra fazer o serviço sujo.
'Beleza Americana’ é disparado a maior fraude cinematográfica dos últimos dez anos, a coisa mais fake que há, zero em autenticidade e profundidade, dez em pretensão e superficialidade. O retrato da degradação de uma típica família de classe média americana é tão rasteiro quanto as polêmicas rasas de Adrian Lyne, mas se traveste de cinema autoral, utilizando uma embalagem de filme de arte mas apelando para as mais manjadas referências (o morto que conta a história, chupado de ‘Crepúsculo dos Deuses’, a fotografia em tons berrantes remetendo aos "melodramas críticos" de Douglas Sirk nos anos 50, que Todd Haynes utilizou com mais brilhantismo e efetividade no ótimo ‘Longe do Paraíso’ e é habitualmente homenageado/parodiado por Almodóvar) e apoiando-se em diálogos risíveis, atuações beirando o ridículo (sim, é evidente que o tom é caricatural mesmo, mas o resultado é aquela forçação de barra, um troço over demais, passando do ponto pra um cara que fez carreira trabalhando com texto e atores), tudo de uma previsibilidade atroz, e ainda por cima aquele tipo de filme em que o diretor abusa de sacadinhas "espertas", parecendo dar aquela piscadinha para o espectador, tipo querendo dizer "sacou?". (Sim, saquei, meu caro, e já vi isso trocentas vezes antes e melhor). Mandes na verdade pegou carona em dois ótimos filmes lançados nos dois anos anteriores sobre o mesmo tema mas com um tratamento muito mais denso e original: ‘Tempestade de Gelo’ (1997), de Ang Lee, e ‘Felicidade’ (1998), de Todd Solondz.
O primeiro se passa na América da primeira metade da década de 70, no fim de semana em que se comemora o tradicional Dia de Ação de Graças, e retrata o outro lado da liberação dos costumes alcançada nos libertária década anterior – o sonho já tinha acabado, lembra? Ben (Kevin Kline), casado com Elena (Joan Allen), tem uma relação extra-conjugal com Janey (Sigourney Weaver), e a indiferença e o egocentrismo do triângulo trará conseqüências trágicas para os filhos das duas famílias. O diretor Ang Lee, nascido em Taiwan mas labutando há tempos em Hollywood, já tinha no currículo sucessos como ‘O Banquete de Casamento’ e ‘Razão e Sensibilidade’, e a seguir se consagraria com ‘O Tigre e o Dragão’ e ‘Brokeback Maountain’. Já o segundo é mais uma provocação do bizarro Todd Solondz, com toda a sorte de acontecimentos chocantes comuns ao cineasta de ‘De Volta à Casa das Bonecas’. Trata-se do retrato de três irmãs absurdamente infelizes (Lara Flynn Boyle, Jane Adams e Cynthia Stevenson) e a fauna de criaturas perturdadas que as circunda, incluindo um gordinho (Philip Seymour Hoffman) obcecado pela poeta (Boyle), que só quer ouvir sua voz ao telefone e se masturbar – pra depois limpar-se na parede e anotar a data do gozo (!!!!!) -, um psiquiatra (Dylan Baker, marido da dona-de-casa interpretada por Stevenson) que abusa os colegas de seu filho e um loser que, sentindo-se rejeitado, humilha a personagem de Adams em um jantar que era para ser de romance. Ambas as produções têm o frescor e a inventividade típicas do cinema americano de cunho independente – que Sam Mendes chupou na cara dura pra compor seu banal melodrama social suburbano, um festival de observações absolutamente previsíveis da implosão do sonho americano, do tédio e o vazio que vêm a reboque da não-realização profissional e pessoal do casal vivido por Annette Bening e Kevin Spacey, resultado de uma neurótica busca apartada de valores essenciais.
Após o sucesso de ‘Beleza ...’, Mendes rodou o bom ‘Estrada para a Perdição’ (2002), com Paul Newman e Tom Hanks, uma reflexão sobre a lealdade a qualquer preço, bem mais sóbrio e sem o tom pretensioso e forçado de seu trabalho anterior, e o drama de guerra (do Golfo) ‘Soldado Anônimo’ (Jarhead, de 2005 - não vi), com Jake Gyllenhall. E eis que em 2008 resolveu voltar ao tema que o consagrou no filme de estréia, e desta vez, não apenas se utilizando de referências cinematográficas dos 50, época da primeira ‘new wave’ do filme americano (Sam Fuller, Richard Brooks, Nicholas Ray, Robert Aldrich), avó do cinema indie dos 80 e 90, mas ambientando mesmo a trama naquele período. O resultado é tão previsível e falho quanto ‘Beleza Americana’, agravado ainda pelo fato de o realizador estar se repetindo.
Propagandeado all over the World como o reencontro do casal de ‘Titanic’, Kate Winslet (hoje sra. Sam Mendes, por sinal) e Leonardo DiCaprio, ‘Foi Apenas um Sonho’ tem por base o demolidor romance ‘Revolutionary Road’, retrato impiedoso do escritor Richard Yates sobre as mudanças na sociedade americana após o final da Segunda Guerra, em que a prosperidade, a explosão de consumo, as oportunidades abundantes, a aparente segurança escondiam uma outra América, a do conforto à base da renúncia aos sonhos, da normalidade mal disfarçada pela adesão justamente aos ideais conformistas que contrariam o espírito fundador do país (o McCarthismo é um tema que não chega a ser explorado diretamente no filme, mas que, relata Yates, influenciou decisivamente o clima da narrativa do livro). O romance foi lançado em 1961e imediatamente aclamado, sendo eleito também – pela revista Time em 2005 - um dos 100 melhores em língua inglesa, de 1923 aos dias atuais, e acaba de ganhar edição brasileira agora pela Ed. Alfaguara.
A trama é a seguinte: April (Winslet), atriz de teatro, quer viver intensamente; Frank (DiCaprio), a quem April conhece em uma festa, tem a mesma mentalidade. Mas em uma apresentação de "A Floresta Petrificada", a falta de talento de April fica evidente, ao passo que seu agora marido Frank, ainda que entediado, tem um emprego mais ou menos estável em uma companhia de seguros. A insatisfação crescente de ambos com a vidinha sem graça no subúrbio faz com que April proponha uma medida drástica a Frank: mudarem-se para Paris, onde ela trabalharia como secretária , enquanto Frank decide o que quer fazer da vida. Frank hesita, pensando nos riscos que isso acarretaria – agora, eles têm dois filhos pra sustentar -, mas acaba topando. Os planos são anunciados aos colegas, que reagem incrédulos, e aos vizinhos, que se escandalizam. A notícia chega até o chefe de Frank, que, inesperadamente após chutar o balde na empresa, começa a ser respeitado – esta, uma das melhores seqüências do filme, a confirmar a premissa básica deste retrato opaco (com o auxílio da correta fotografia de Roger Deakins) da vidinha mais ou menos do casal: cansado de dar explicações e ser xingado por um sub-chefe, sai-se com uma solução que é puro deboche ... e acaba dando certo! O chefe-maior lhe oferece um aumento e lhe fala de sua admiração pelo empregado ... e Frank passa a reconsiderar os planos de mudar de vida de April.
‘Foi Apenas um Sonho’ – mais um título estúpido que os tradutores nacionais impõem a uma obra estrangeira, ainda por cima sugerindo mais do que o recomendável – não é um filme ruim, apenas previsível, redundante, e, a meu ver, inconsistente. Por mais que se esforce a talentosa dupla de atores – Kate, então, já pode ser considerada uma das grandes do cinema atual, num nível próximo ao de uma Juliane Moore, superior a Cate Blanchet -, os personagens não são totalmente críveis, o roteiro não tem aquela consistência toda e isso e ainda sofre com a encheção de lingüiça própria da obra de Sam Mendes: o desembarque de Frank em uma estação de trem rumo ao trabalho, junto a dezenas de homens de terno no mesmo tom cinzento que ele, é só mais uma das observações banais de que Mendes lança mão em seus filmes, exageradamente superestimados.
Talvez ‘Foi Apenas um Sonho’ não leve os principais Oscars da temporada – ‘Slumdog Millionaire’, de Danny Boyle, vem sendo apontado como o grande favorito -, mas é inegável que foi feito com vistas a isso, assim como ‘O Curioso Caso de Benjamin Button’, um David Fincher meio atípico, e o bom ‘A Troca’, projeto que o grande Clint Eastwood assumiu às pressas. Mas já fez um estrago bem maior, que é conquistar – ou ratificar, melhor dizendo - fama e fortuna (crítica, inclusive) para seu diretor justamente pelo que ele não é. Adrian Lyne jamais foi levado a sério pelos cinéfilos e pela imprensa especializada, e nesse quesito leva desvantagem nesta comparação – um tanto esdrúxula, admito - com seu compatriota. Por outro lado, jamais levou-se a sério, o que faz dele uma fraude bem menor.
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Ô José: mas que paulada no Sam Mendes. Eu até gostei do "enganador" Beleza Americana. Quanto à produção recente (Foi Apenas um Sonho), tenho cópia pirata aqui em casa, porque aqui em Sampa elas nos chegam primeiro que nos cinemas. Mas não reuni tempo - e pelo comentário do amigo deverei prescindir ainda de coragem - para assistir. Mas enfim, os gringos com seus problemas. Proponho a temática cinema brazuca e sua cansativa estética da favela que, com Cidade de Deus, fez seu mais rico número. Daniel Filho disse recentemente em entrevista à Folha que cinema é entretenimento, acima de tudo e criticou tal estética. Donde faço um recorte ainda menor e me pergunto também: porque ainda tem diretor gaúcho insistindo na temática campeira, que é um troço sem apelo universal algum. E tu e o Grizotti sabem a que diretor me refiro, he he he. Abraços galo véio!!!
ResponderExcluirCaro Anderson Passos, nosso homem em Sampa (cuidado com as companhias): nunca gostei de 'Beleza Americana' por me parecer fake demais, um retrato forçado e redundante do tédio da classe média americana que vive nos subúrbios, além das interpretações over (o que eu escrevi ali, tô me repetindo). Mas dei umas chances a mais pro indivíduo - gosto do 'Estrada para a Perdição', nada demais, mas não abusa da pretensão -, só que esse último, pra mim, é quase que uma repetição daquele, embora mais verdadeiro - até porque com interpretações melhores. Mas não me convenceu, não adianta. Mas é o que digo sempre: crítica positiva, crítica negativa ... tudo é opinião, o cara tem de ver pra formar a sua própria. Quanto à estética de favela, concordo plenamente, e mais, o cinema brasileiro daqui a pouco vai ter de lançar mais uma estética: depois da da fome do Cinema Novo, do neon realismo de alguns paulistas dos 80, daquela coisa tosca mas divertida da boca do Lixo e da estética de novelão global de filmes como o famigerado 'Olga', tá aí a estética ONG: muita consciência social (culpa das classes mais favorecidas?), favela bem fotografada, tom de denúncia próprio de quem ou não viveu nem jamais viverá aquela realidade ou toma posições de um lado ou de outro (o do bandido em 'Carandiru', o do policial em 'Tropa de Elite'). Tá mais que desgastado esse filão aí da violência urbana - aliás, o próprio debate social em torno do tema, a meu ver -, e eu não lamento, muito pelo contrário, que o 'Linha 174', da família 171, tenha sobrado da finaleira do Oscar. Bem feito - pra família Barreto, pra comissão que escolhe (mal, muito mal) o representante brasileiro no certame, e pra quem faz cinema pensando em Oscar!
ResponderExcluirAbraço, velhinho - e quando estiveres em POA, tomamos aquela cangibrina por aí.