(Versátil)
Houve um tempo no cinema em que não era incomum alguém fazer grande arte enquanto se divertia apedrejando o status quo. O parisiense Jean Vigo (1905-1934) era dessa gloriosa estirpe, e pela primeira vez sua obra sai inteirinha em DVD no Brasil.
Filho de um anarquista que atendia por Almereyda (“um nome que tem merda”), Vigo herdou do pai a saúde frágil – morreu tuberculoso aos 29 anos, finalizando O Atalante pregado a uma cama – e a revolta. Deixou só quatro filmes, o que bastou para torná-lo um dos autores fundamentais do cinema.
A Propósito de Nice (1930) e Taris ou a Natação (1931) são documentários. O primeiro é mais interessante: Vigo passeia com a câmera pelas ruas de Nice, flagrando a frivolidade e o tédio burgueses, compondo um painel caricatural que não exclui intercalar cenas dessa gente com as de animais. Já Taris, uma exaltação às qualidades do campeão de natação francês Jean Taris, foi obra de encomenda – mas Vigo aproveita para exercitar seu estilo, herdeiro das vanguardas da época.
Zero de Comportamento (1933) é a matriz de todos os filmes de rebeldia juvenil, de If... a Sociedade dos Poetas Mortos. Professores são feitos de palhaço sem dó por alunos inconformados, em seqüências famosas como a do diretor sendo bombardeado por frutas no pátio da escola. E O Atalante (1934) entra em quase todas as listas dos filmes mais importantes da história. Misturando realismo poético, técnicas de documentário e surrealismo, é a crônica do início da vida em comum de um jovem casal: o marinheiro Jean (Jean Dasté) casa-se com a filha de camponeses Juliette (Dita Parlo, inspiração de Madonna na tour 'Blond Ambition') e a leva consigo para a vida a bordo do Atalante. Lá vivem ainda um velho marujo, uma multidão de gatos e um grumete. Juliette quer conhecer Paris e botar ordem no ambiente, Jean quer seguir sua rotina. O desentendimento é inevitável, mas aos poucos um percebe que não vive sem o outro, dando a deixa para cenas marcantes: um transtornado Jean mergulha no rio para “procurar” a sumida Juliette; Juliette se revira na cama, suspirando a falta do corpo de Jean – seqüência que deve ter servido de pretexto para a proibição do filme, o que já ocorrera com Zero.
Todos os 162 minutos da vigorosa obra de Vigo, restaurados, estão no DVD duplo “Jean Vigo Integral”. Além dos filmes, os caprichados extras incluem uma entrevista do herói de todos os cinéfilos, François Truffaut, por seu colega Eric Rohmer, e depoimentos de notáveis do quilate de Antonio Candido, Sylvia Fagundes Telles, Ismail Xavier e Carlos Augusto Calili sobre a importância de Paulo Emílio Salles Gomes, fundador da Cinemateca Brasileira e muito provavelmente o maior crítico de cinema do país em todos os tempos. Paulo Emílio também foi o grande responsável pelo resgate de Vigo na França nos anos 1950.
'O Atalante': poesia é isso
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