Transcorrida mais uma cerimônia de premiação da chamada "maior festa do cinema mundial" (esses inextinguíveis clichês jornalísticos ...), confesso que não posso opinar sobre a justiça (ou não) dos resultados do certame e menos ainda sobre o evento em si. Basicamente, pelas óbvias razões de que, primeiro, não vi a maioria dos filmes envolvidos na disputa pelos principais prêmios, e, segundo, porque não vi a própria cerimônia, far away from cable que estava (e a Globo, claro, não iria queimar o Carnaval carioca pelo Oscar). Li na página do Roger Ebert, no Chicago Sun-Times, que foi a melhor cerimônia a que ele assistiu (e ele assistiu a várias) em muito tempo. Paciência. Ganharam aqueles mais ou menos esperados, talvez de surpreendente só mesmo a montanha de estatuetas dadas ao tal ‘Slumdog Millionaire’, do Danny Boyle – mais um cineasta britânico superestimado, com alguns bons filmes no currículo, mas longe de ser tudo isso – e a não premiação do ressuscitado do inferno Mickey Rourke, por sua monstruosa (naturalmente em mais de uma acepção) caracterização em ‘The Wrestler’ (se bem que, persona non grata na indústria há muito tempo, por conta do comportamento irascível e da língua solta, sua indicação já pode ser interpretada como um prêmio, soando como algo tipo "te damos mais uma chance, mas ainda estás em observação". Azar da Academia, anyway).
Mas o que eu quero comentar não é sobre quem foi e quem não foi premiado, mas sobre quem nem sequer chegou lá pra ver a festa dos outros. Mais uma vez, o ansiado Oscar para a emergente cinematografia nacional não saiu para o país do carnaval. Nem poderia. A comissão de notáveis que escolhe o candidato brasileiro para a festa que os perdedores brasucas costuma dizer ser "uma festa deles" – o curioso é que esse universo supostamente fechado aos filmes brasileiros tem sido receptivo a lugares ‘representativos’ da produção cinematográfica mundial tais como Suíça, Bósnia, Áustria e África do Sul (?!) –, ao invés de apostar em títulos que atestam a originalidade e o vigor do cinema brasileiro nos últimos anos (‘Cinema, Aspirina, Urubus’, ‘Árido Movie’, ‘O Céu de Suely’, ‘Cidade Baixa’, ‘O Baixio das Bestas’) têm dado vez a produções que, segundo as sumidades que fazem parte da referida confraria, teriam mais condições de se dar bem na cerimônia, têm ‘mais cara de Oscar’ – como o novelão ‘Olga’, filmeco lotado de clichês que disperdiça uma das mais pungentes histórias de coragem e paixão possíveis, transformando-a um melodrama barato e apelativo, tipo de cinebiografia que desrespeita a rica trajetória do(s) biografado(s) e que até Hollywood tem vergonha de fazer. Este ano, o pessoal escolheu ‘Última Parada: 174’, de Bruno Barreto, para finalmente acabar – ou minimizar – com este complexo de vira-latas nacional do qual só o futebol, ao que parece, conseguiu imunizar-se totalmente até hoje (e há apenas 50 anos). Mas não deu, o mais recente empreendimento da família Barreto não descolou o sonhado convite para a festa principal. Nem poderia, insisto.
Além da absoluta pretensão de tentar adivinhar o que vai na cabeça dos acadêmicos, de querer avaliar, entre as produções lançadas no mercado nacional ao longo da temporada passada, aquela que teria mais chances de dobrar o pessoal que outorga os prêmios mais cobiçados do mercado cinematográfico, a tal comissão (formada por Antonio Alfredo Torres Bandeira, Cleber Eduardo Miranda dos Santos, Silvia Maria Sachs Rabello, Maria Dora Genis Mourão, o nosso Giba Assis Brasil e Paulo Sérgio Almeida, além do secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, Silvio Da-Rin, que presidiu os trabalhos) demonstra não conhecer a competição para a qual indicaram um representante. É sabido por qualquer cinéfilo minimamente informado que a categoria de Melhor Filme Estrangeiro tem significativa diferença em relação às outras premiações, destinadas aos filmes de língua inglesa: trabalhos com uma linguagem mais autoral e mais ousados esteticamente freqüentemente são premiados, mesmo que ali também haja injustiças vez que outra, talvez por tratar-se do mercado dos outros – afinal, se o Oscar é um prêmio da indústria, um indicativo do tipo de produção que a Academia imagina que deva mais ou menos balizar o trabalho dos estúdios no momento (filmes de orçamentos inchados, com grandes astros e produções onde salta aos olhos cada centavo gasto têm dado lugar ultimamente a produções de cunho mais independente, de cifras reduzidas), quando o foco sai do próprio umbigo esses critérios mercadológicos podem ficar em segundo plano. Enfim, especulações à parte, o fato é que na categoria de filme estrangeiro De Sica, Buñuel, Truffaut, Fellini e Kurosawa chegaram a ser premiados consecutivamente, no início dos anos 1970, e Bergman chegou a levar dois seguidos, entre o final dos 50/início dos 60, época da explosão, em escala mundial, do cinema europeu de arte. Filmes francamente políticos (leia-se esquerdistas de carteirinha), como ‘Z’, de Costa-Gavras, e ‘Investigação de Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita’, de Elio Petri, além de ‘A História Oficial’, da vizinha Argentina, também levantaram o trofèu dourado. Fica difícil imaginar, então, porque a Academia se deslumbraria com um filme (mais um!) brasileiro sobre violência urbana cinco anos depois de recusar a principal referência recente do gênero, o fenômeno (mundial, aliás, tanto de público quanto de crítica) ‘Cidade de Deus’, preterido à época supostamente por ter chocado os acadêmicos mais idosos pela sua extrema violência, apesar do lobby massivo do então todo-poderoso chefão da Miramax, Harvey Weinstein.
Lobby, aliás, que funciona que é uma beleza por aqui. A força da família Barreto é uma coisa impressionante, tanto para conseguir financiamento público quanto emplacar indicações como essa, para o direito de ser o representante oficial do Brasil no Oscar – se não estou enganado, a terceira em quinze anos (Fábio Barreto, que divide com ‘Jayminho’ Monjardim o posto de mais medíocre cineasta brasileiro da atualidade, por ‘O Quatrilho’, e Bruno pela sua controversa adaptação de ‘O Que é Isso Companheiro?’, além do ‘174’). O velho Barretão, Luís Carlos, tem seus serviços prestados ao cinema brasileiro: é o responsável pela histórica fotografia de ‘Vidas Secas’, de Nélson Pereira, uma das principais referências da ‘estética da fome’ do Cinema Novo, foi amigo pessoal de Gláuber Rocha, é co-roteirista de ‘Assalto ao Trem Pagador’ de Roberto Farias, além de produtor íncansável de mais de 70 filmes em quase 40 anos de carreira – entre eles, a maior bilheteria do país em todos os tempos, ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’ –, sobrevivendo a todas as crises que já se abateram sobre a produção nacional – ‘O Quatrilho’ justamente foi uma das produções que realavancou o cinema brasileiro em meados dos 90, a famosa ‘retomada’logo após a terra arrasada da era Collor. Mas age como cartola de futebol nos bastidores, pegando pesado para que seu time e só ele obtenha benefícios que muito bem poderiam ser buscados no próprio mercado, por conta do tipo de produção, mais acessível, em que costuma investir e naturalmente pelos resultados apresentados. Aliás, uma das boas coisas da passagem de Gilberto Gil pelo Ministério da Cultura foi justamente negar patrocínio público para quem já está mais do que consolidado no mercado e teoricamante não necessitaria se agarrar às mamas do Estado, como Barretão. Claro que ele chiou, então, dando o carteiraço de que "tenho mais de trinta anos de atividades, vários de meus filmes foram campeões de bilheteria ...", ao que Gil respondeu que justamente a função de seu Ministério não era dar dinheiro pra medalhões que não precisam mas para quem tem, ao contrário, talento de sobra mas dificuldades de mostrar a cara.
Mas o mais curioso de tudo é que a escolha da indicação de ‘174’ como filme oficial do Brasil para o Oscar saiu no dia 16 de setembro do ano passado sem que a obra tivesse entrado no circuitão ainda – apenas algumas exibições em festivais foram registradas, já que a entrada em cartaz nacional estava prevista só para 24 de outubro. Mas então como é que obteve a indicação, se uma das exigências justamente é ser exibido em cinemas – com venda de ingressos, naturalmente – por pelo menos uma semana? Ah, aí entra mais uma brilhante jogada da família Barreto: para cumprir a exigência, o filme foi colocado, em uma única sala, em Jundiaí, interior de São Paulo. Cumpriu a regra, mas não deu condições para que a aceitação popular e a opinião da crítica especializada fossem minimamente consideradas, o que reforça a idéia de que a tal comissão de notáveis responsável pela escolha imagina-se uma autoridade e tanto no que é melhor para o Brasil em termos de visibilidade do seu produto audiovisual. Portanto, a única conclusão possível é que, ao desprezarem a Academia, cuja preferência eles imaginam ser por produções corriqueiras, acabaram desprezando também o que de melhor o filme nacional brasileiro produziu, preterido a criatividade em prol do senso comum (que, repito, eles imaginam saber como é) e o próprio filme indicado, que, afinal, cabe neste contexto furado deles de ‘filme acessível ao gosto acadêmico’. O cinema brasileiro ficou sem o passaporte para o evento que parece concentrar todas as expectativas de uma parte significativa dos realizadores, da imprensa e do público brasileiros, para quem falta a estatueta dourada para ser definitivamente legitimada a produção audiovisual brasuca. O que é uma grossa bobagem, obviamente, já que o Oscar não serve para legitimar absolutamente coisa nenhuma – se é por preimação, Cannes, Berlim, Sundance, Toronto, Veneza ... têm mais credibilidade, e se o critério é a posição na indústria, o cinema nacional já está definitivamente representado por diversos atores e realizadores que vêm constantemente filmando em Hollywood ou trabalhando em co-produções estrangeiras faz tempo.
Não vi ‘Última Parada: 174’, talvez até seja um filmão. Bruno Barreto, sabidamente, é um cineasta competente – o ótimo ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’ foi lançado quando Bruno contava com apenas 21 anos de idade – e um realizador que se sai bem no drama (‘O Beijo no Asfalto’), na comédia (‘Dona Flor’), no suspense (‘O Que É Isso, Companheiro?’ é um thriller eficiente, apesar da mal enjambrada relatividade moral proposta para certos personagens). Mas não é um autor, alguém com uma visão particular de mundo e de cinema, que mereça esta distinção, a honra de representar a arte de um país. A trágica história de Sandro do Nascimento, sobrevivente da chacina da Candelária que resolve sequestrar um ônibus, também já havia sido contada antes por José ‘Tropa de Elite’ Padilha, no documentário ‘Linha 174’. E filmes brasileiros de violência urbana, cá entre nós, é um filão que já se esgotou – até os cinemeiros gringos já não têm mais saco pra isso. ‘Estômago’, o divertido filme de estréia (em ficção) de Marcos Jorge, tinha todos os quesitos para fazer bonito na desesperada busca pela estatueta que parte do cinema brasileiro acha que precisa: é original, conta uma história que prende a atenção do início ao fim sem jamais perder o ritmo, possui grandes personagens (o mais óbvio é o Raimundo Nonato do baiano João Miguel, mas há ainda a Íria da curitibana – estreante – Fabíula do Nascimento, o Bujiú de Babu Santana, e mais um cômico bandidão composto pelo Titã Paulo Miklos, Etecétera), diálogos bem construídos e impagáveis, além do tratamento engenhoso que dá para o tema que serve de mote para a história, que é a lei do mais forte (ou mais esperto) na luta pelo poder em diferentes esferas da sociedade brasileira.
Então, no final das contas, é bem feito, pra comissão de notáveis, pros Barreto, pro cinema nacional, que a tal indicação não saiu. Ninguém mandou fazer filme pra ganhar Oscar. Nem escolher filme de organização mafiosa pra representar um ramo de atividade que vem dando seguidas mostras de vitalidade no Brasil. O provincianismo imperou na escolha local, mas foi derrotado mais uma vez pela ‘diretoria’, que fez a justiça que não foi feita antes na origem. O cinema de verdade agradece.
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Alô José: pungente o texto sobre os nossos não indicados - graças a deus - ao Oscar. Agora, mais surpreendente é a informação de que a nossa "comissão de notáveis sabedores de cinema" tenha entre seus integrantes o Giba Assis Brasil. Daí que a pergunta é: como pode? Não queria estar na pele dele. E isto vale para o bem e para o mal de integrar essa confraria cinéfila, cujo olhar parece desfocado da nossa realidade cinematográfica e, pior, do que pensa a "Acadimia". Só pode ser creditado ao poder político dos Barreto essa indicação. Afinal, todos já passamos pelo documentário Ônibus 174 e sabemos o quanto ele é mais pungente do que a obra do Barreto, mesmo sem ver o segundo - fato do qual me irmano ao autor das letras acima. Cinema no Brasil é coisa de família, coisa de ex-global megalômano, às vezes ação entre amigos, em alguns momentos uma coisa de bombachas constrangedora (tendo em Concerto Campestre seu mais acachapante exemplo). Mas felizmente, em casos isolados, ainda temos capacidade de produzir boas obras, indiferente da estética da favela tão em voga. E é pena que a lupa da "comissão de notáveis" esteja quebrada para eles. Abraços
ResponderExcluirÉ a família 171 emplacando o ônibus 174. Não tem cabimento, um leitor de Jundiaí, onde o filme teria sido colocado em cartaz pra poder concorrer, se manifestou lá no blog do Merten no Estadão dizendo que vai ao cinema trocentas vezes por semana e não lembra de ter visto o filme em cartaz lá. Mas o Bruno pelo menos ainda tem algum talento, embora seja meio 'pau pra toda obra', sem uma visão autoral, brabo é ter de agüentar o Fábio 'Azaléia' Barreto, que puxou o saco da gringada da Serra ('O Quatrilho'), seguiu amealhando patrocínio junto à alemoada do Vale ('A Paixão de Jacobina'), voltou a extorquir os gringos ('Nossa Senhora do Caravaggio' - será que o Felipão ajudou a patrocinar isso aí?), e qualquer hora vai aliviar os bolsos das comunidades judaica, indígena, polaca e afrodescendente do Rio Grande também. Parece que, a exemplo do 'Jayminho' Monjardim, é casado com uma gaúcha, e ainda por cima resolveu já faz um tempo morara aqui. Agora, a querência amada, governada por uma paulista descompassada, virou refúgio de cineastas medíocres! Pobre Rio Grande. Abraço, meu velho!
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