Outra lacuna imperdoável no nosso mercado de vídeo caseiro é a ausência inexplicável de clássicos do cinema brasileiro, justo quando o público em geral parece ter perdido definitivamente a implicância com filmes nacionais – o porquê dessa prevenção é assunto complicado e pra outra hora. O fato é que dia desses, fuçando as prateleiras de uma loja, encontrei uma esquecida obra-prima brasileira, escondida em meio a dezenas de outros filmes. Tinha uma cópia só, e o preço, uma fortuna - é que a edição não era nacional, mas americana (!). Com recomendação – entusiasmadíssima – na capinha de um crítico bambambam deles lá (Vincent Canby, Andrew Sarris, Richard Schickel, ... não lembro qual era) e tudo. Trata-se de um dos cinco melhores filmes brasileiros dos últimos 25 anos, na modestíssima opinião deste que vos escreve, e traz também uma das melhores interpretações de todos os tempos.
'A Hora da Estrela' já nasceu lendário por n fatores: adaptação do penúltimo romance de Clarice Lispector – último publicado em vida, por sinal no ano em que faleceria (1977) a ucraniana radicada no Brasil, autora de clássicos como ‘A Paixão Segundo G.H.’ e ‘Perto do Coração Selvagem’ -, foi o primeiro longa-metragem dirigido por Suzana Amaral, que à época contava já com 53 anos de idade. Nascida na capital paulista em 1932, a realizadora inscrevera-se na primeira turma do curso de cinema da ECA-USP em 1968, formando-se em 1971. Ao longo dos anos 1970, realizaria diversos e premiados curtas-metragens e documentários para a TV Cultura (SP), além de cursar uma pós-graduação em direção de cinema na Universidade de Nova Iorque. Em 1985 – aos 53 anos, portanto –, Suzana assombrou as platéias nacionais e estrangeiras. Aliás, Suzana e Marcélia Cartaxo.
A história infeliz da nordestina Macabéia, que perde pai, mãe, tia e vai tentar a sorte no Rio de Janeiro como datilógrafa, levando uma rasteira atrás da outra, é daqueles casos típicos do cinema em que dizemos “isto não teria o mesmo impacto – ou nem mesmo funcionaria – com outra pessoa desempenhando o papel principal”. Como nos clássicos ‘Um Bonde Chamado Desejo’ sem o Kowalski de Marlon Brando, ou ‘A Malvada’ sem o trio Bete Davis/Anne Baxter/George Sands, ou ainda os recentes ‘O Lutador’ sem Mickey Rourke e ‘Piaf’ sem a encarnação espírita de Marion Cotillard, não dá pra imaginar Macabéia na pele de outra atriz que não Marcélia, mesmo que o elenco conte com gente do quilate de José Dumont (como Olímpico de Jesus, que começa a namorar a protagonista até que esta tem seu tapete puxado por uma colega de trabalho) e até dame Fernanda Montenegro. É impossível tirar os olhos da atriz paraibana: a fragilidade, a ingenuidade, o despreparo da retirante encontram sua cara, voz e gestos na intérprete que fazia justamente ali sua estréia. (Vendo recentemente ‘Estômago’, de Marcos Jorge, lembrei de Márcélia/Macabéia na caracterização marcante de Raimundo Nonato/Alecrim feita por João Miguel: o mesmo olhar de insegurança e perplexidade de quem tenta se defender como pode de um mundo cruel que o despreza. Mas com uma diferença marcante: Alecrim vai aprendendo aos poucos a se virar na selva, incorporando ao final um olhar vigilante adquirido após os seguidos tombos. A Macabéia de Marcela, não: é pura inocência e credulidade até o fim, quando é então engolida). Estréia de luxo: prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília e um consagrador Urso de Prata em Berlim. A película ainda renderia as estatuetas de melhor ator (José Dumont), melhor fotografia, melhor edição, além dos prêmios de melhor filme e direção, para Suzana, em Brasília. Em Berlim, Suzana foi indicada para o Urso de Ouro de direção, mas não levou, mas faturou o prêmio da crítica. Em Havana, um ano depois, a diretora foi laureada com a melhor direção.
Se a diretora demorou a iniciar sua vida no cinema, a atriz começou a trilhar seu caminho bem cedo: na adolescência, já fugia de casa, em Cajazeiras, para ensaiar às escondidas com os amigos, pois a mãe achava que interpretar era coisa “de rameira e de vagabundo”. Além de driblar a família, ainda tinha de se virar pra arrumar grana pra ir ao cinema, e a solução encontrada já serve pra demonstrar todo o bom humor e determinação da futura atriz: roubava as moedas depositadas pelos fiéis numa estátua de Santo Antônio de sua cidade. (Anos mais tarde, contando a história, comentou que “o santo deve ter achado um bom investimento”, pois ela jamais foi descoberta). Marcélia foi descoberta, sim, por Suzana Amaral, em uma apresentação do grupo teatral da atriz em São Paulo. Na hora, a diretora sacou que ali estava sua estrela.
No ano seguinte, Marcélia atuaria em ‘Brasa Adormecida’, de Djalma Limonji Batista, e logo começaria a aparecer em novelas e minisséries televisivas. Tem participado de vários filmes brasileiros, como ‘Madame Satã’ e ‘O Céu de Suely’, de Karim Aïnouz, ‘Quanto Vale ou é por Quilo?’, de Sérgio Bianchi, ‘Crime Delicado’, de Beto Brant, e ‘O Baixio das Bestas’, de Cláudio Assis. Suzana, por sua vez, seguiu escrevendo e dirigindo trabalhos para a televisão (inclusive em Portugal) e realizou apenas mais um longa, ‘Uma Vida Em Segredo’, em 2001. ‘A Hora da Estrela’ é o feliz encontro de uma diretora sensível, segura, que sabe muito bem o que faz, com uma atriz magnífica, de uma força inexplicável, na feliz adaptação da obra de uma escritora singular. O romance, felizmente, é encontrável sem dificuldade nas melhores livrarias, até em edições diferentes. Já o filme faz uma falta danada nas locadoras.
'A Hora da Estrela' já nasceu lendário por n fatores: adaptação do penúltimo romance de Clarice Lispector – último publicado em vida, por sinal no ano em que faleceria (1977) a ucraniana radicada no Brasil, autora de clássicos como ‘A Paixão Segundo G.H.’ e ‘Perto do Coração Selvagem’ -, foi o primeiro longa-metragem dirigido por Suzana Amaral, que à época contava já com 53 anos de idade. Nascida na capital paulista em 1932, a realizadora inscrevera-se na primeira turma do curso de cinema da ECA-USP em 1968, formando-se em 1971. Ao longo dos anos 1970, realizaria diversos e premiados curtas-metragens e documentários para a TV Cultura (SP), além de cursar uma pós-graduação em direção de cinema na Universidade de Nova Iorque. Em 1985 – aos 53 anos, portanto –, Suzana assombrou as platéias nacionais e estrangeiras. Aliás, Suzana e Marcélia Cartaxo.
A história infeliz da nordestina Macabéia, que perde pai, mãe, tia e vai tentar a sorte no Rio de Janeiro como datilógrafa, levando uma rasteira atrás da outra, é daqueles casos típicos do cinema em que dizemos “isto não teria o mesmo impacto – ou nem mesmo funcionaria – com outra pessoa desempenhando o papel principal”. Como nos clássicos ‘Um Bonde Chamado Desejo’ sem o Kowalski de Marlon Brando, ou ‘A Malvada’ sem o trio Bete Davis/Anne Baxter/George Sands, ou ainda os recentes ‘O Lutador’ sem Mickey Rourke e ‘Piaf’ sem a encarnação espírita de Marion Cotillard, não dá pra imaginar Macabéia na pele de outra atriz que não Marcélia, mesmo que o elenco conte com gente do quilate de José Dumont (como Olímpico de Jesus, que começa a namorar a protagonista até que esta tem seu tapete puxado por uma colega de trabalho) e até dame Fernanda Montenegro. É impossível tirar os olhos da atriz paraibana: a fragilidade, a ingenuidade, o despreparo da retirante encontram sua cara, voz e gestos na intérprete que fazia justamente ali sua estréia. (Vendo recentemente ‘Estômago’, de Marcos Jorge, lembrei de Márcélia/Macabéia na caracterização marcante de Raimundo Nonato/Alecrim feita por João Miguel: o mesmo olhar de insegurança e perplexidade de quem tenta se defender como pode de um mundo cruel que o despreza. Mas com uma diferença marcante: Alecrim vai aprendendo aos poucos a se virar na selva, incorporando ao final um olhar vigilante adquirido após os seguidos tombos. A Macabéia de Marcela, não: é pura inocência e credulidade até o fim, quando é então engolida). Estréia de luxo: prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília e um consagrador Urso de Prata em Berlim. A película ainda renderia as estatuetas de melhor ator (José Dumont), melhor fotografia, melhor edição, além dos prêmios de melhor filme e direção, para Suzana, em Brasília. Em Berlim, Suzana foi indicada para o Urso de Ouro de direção, mas não levou, mas faturou o prêmio da crítica. Em Havana, um ano depois, a diretora foi laureada com a melhor direção.
Se a diretora demorou a iniciar sua vida no cinema, a atriz começou a trilhar seu caminho bem cedo: na adolescência, já fugia de casa, em Cajazeiras, para ensaiar às escondidas com os amigos, pois a mãe achava que interpretar era coisa “de rameira e de vagabundo”. Além de driblar a família, ainda tinha de se virar pra arrumar grana pra ir ao cinema, e a solução encontrada já serve pra demonstrar todo o bom humor e determinação da futura atriz: roubava as moedas depositadas pelos fiéis numa estátua de Santo Antônio de sua cidade. (Anos mais tarde, contando a história, comentou que “o santo deve ter achado um bom investimento”, pois ela jamais foi descoberta). Marcélia foi descoberta, sim, por Suzana Amaral, em uma apresentação do grupo teatral da atriz em São Paulo. Na hora, a diretora sacou que ali estava sua estrela.
No ano seguinte, Marcélia atuaria em ‘Brasa Adormecida’, de Djalma Limonji Batista, e logo começaria a aparecer em novelas e minisséries televisivas. Tem participado de vários filmes brasileiros, como ‘Madame Satã’ e ‘O Céu de Suely’, de Karim Aïnouz, ‘Quanto Vale ou é por Quilo?’, de Sérgio Bianchi, ‘Crime Delicado’, de Beto Brant, e ‘O Baixio das Bestas’, de Cláudio Assis. Suzana, por sua vez, seguiu escrevendo e dirigindo trabalhos para a televisão (inclusive em Portugal) e realizou apenas mais um longa, ‘Uma Vida Em Segredo’, em 2001. ‘A Hora da Estrela’ é o feliz encontro de uma diretora sensível, segura, que sabe muito bem o que faz, com uma atriz magnífica, de uma força inexplicável, na feliz adaptação da obra de uma escritora singular. O romance, felizmente, é encontrável sem dificuldade nas melhores livrarias, até em edições diferentes. Já o filme faz uma falta danada nas locadoras.
Oi, Zé!Estive por aqui, lendo suas postagens e quero registrar que estou gostando muito, tanto que até anotei dicas encontradas em outros textos. Estou bem longe de ser uma cinéfila ( pra ser franca cinema pra mim é Hollywood e desde já, respeite a pluralidade de opiniões)Mas, quis comentar por causa de Clarice Linspector. Caso você busque, nas livrarias comuns, os títulos da autora, encontrará um...dois... e isso, no seu dia de sorte! Há casos de ausência absoluta da sua obra! Procurei o livro " Descoberta do Mundo" em muitas prateleiras da cité. Livro novo! São crônicas de Clarice publicadas na folha de São Paulo, do ano de 1967 a 1970. Consegui,mas só depois da encomenda!Muitos são os livros que faltam nas nossas prateleiras...se você perguntar o motivo, a resposta deve ser a mesma usada na locadora...sem saída... e aí? Sem saída ficamos nós! E ainda em tempo, a sequência (agora sem trema!!) dos diálogos inesquecíveis é sensacional. Indiquei seu blog pra uns cinéfilos absolutos...bons contatos! Abraços meus.
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