quinta-feira, 19 de março de 2009

Motown: 50 anos, 50 hits e algumas revoluções


Saiu não faz muito no mercado nacional um daqueles discos que se pode chamar de imperdíveis – na verdade, três. O CD triplo ‘Motown 50 – Yesterday, Today, Forever’ compila 50 das faixas mais importantes da história do selo fundado por Berry Gordy Jr. em 12 de janeiro de 1959 e que é sinônimo do melhor pop negro produzido na América do Norte – assim como as concorrentes Atlantic e Stax. Mais do que isso, foi responsável por algumas revoluções no mercado da música popular americana.

A história do selo, como tudo que cerca os grandes mitos americanos, já começa com pinta de lenda: antes de fundá-lo, em Detroit, com U$ 800,00 tomados emprestados da família, Gordy já havia fracassado em diversas atividades, tais como vendedor de árvores de Natal, diretor de loja de discos e boxeador profissional. Daí porque o primeiro pedido de empréstimo, que era inicialmente de U$ 1.000,00, foi negado pela família – sim, ele achacou não só o pai e a mãe mas também os irmãos. Só que Berry, que já beirava os 30 anos e havia composto alguns hits para Jackie Wilson, não se dobrava fácil, sentia que ali poderia estar sua última chance de se dar bem e insistiu. Os pais por fim concordaram em lhe alcançar a grana, mas nos seguites termos: a pedida inicial seria reduzida em U$ 200,00, e Berry ainda teria de assinar um documento reconhecendo a dívida – naturalmente, se comprometendo a saldá-la o mais rápido possível, pois o montante sairia de um fundo familiar, para o qual Berry, seus pais e sete irmãos contribuíam todos os meses com U$ 10,00 cada um. No episódio, foi fundamental o apoio feminino: suas irmãs Gwen e Ana sempre estiveram ao seu lado e ajudaram a dobrar a resistência dos demais.

Com o dinheiro arrecadado dos cofres familiares, o primeiro lançamento da recém-fundada Motown Record Company – e que logo seria auto-apelidada de "O Som da América Jovem" –, o single ‘Come to Me’, de Marv Johnson, já emplacou um Top 30. O sucesso já na largada alavancou o projeto Motown, que apostava em canções ganchudas "contendo grandes histórias e grandes batidas" e que não necessariamente soassem marcadamente com cara de música negra, uma vez que Berry e seu braço direito Smokey Robinson (cantor, compositor – hitmaker na mais completa acepção da palavra –, multi-instrumentista e produtor) sacaram que a gravadora não teria vida longa se cativasse apenas o público afro-americano. Foi a primeira revolução: em uma América com a questão racial ainda muito longe de ser resolvida, conseguiu atrair o interesse do público branco para o som palatável mas cheio de suíngue da gravadora e seu cast unicamente de artistas negros. A segunda viria por intermédio de um de seus contratados mais rebeldes – e coincidentemente seu cunhado.

Marvin Gaye, casado com Ana, já era um superstar quando, no início dos anos 1970, preocupado com a temática sem lá muita profundidade de suas canções – e tocado pela morte da parceira (musical) Tammi Terrell, que o fez abandonar os palcos por quase dois anos e pensar até em abandonar a carreira –, entrou em estúdio para registrar uma canção com uma levada meio funky/meio jazzy, com um arranjo de cordas luxuoso, suave na levada, mas com versos incisivos, questionando a guerra, a intolerância, e apelando à paz e ao entendimento. Eram tempos de Vietnã, a luta pelos direitos civis dos negros prosseguia pontuada por confrontos, mas Gordy parecia não se dar conta dos novos tempos, achava que o material mais denso entregue por Marvin não tinha apelo comercial. O cantor, brigão convicto e calejado por conta de suas relações pra lá de conflituosas – e que acabariam tornando-se fatais – com o pai, um pastor evangélico radical, bateu pé e ameaçou não gravar mais uma nota sequer para o selo. Pra não se incomodar, Berry cedeu – e ‘What’s Goin’ On’, a canção, foi direto para o topo das paradas, pavimentando o caminho vitorioso do álbum homônimo, sucesso de vendas e crítica (várias vezes foi votado como o melhor álbum pop de todos os tempos). A bem sucedida empreitada rebelde de Marvin abriu caminhos pra outros artistas que então também já repensavam suas carreiras, como Stevie Wonder - que produziria o melhor da sua também nos anos 1970.

Dezenas de outros grandes talentos passaram pela gravadora – cuja sede também vale-se de uma alcunha pouco modesta, "Hitsville, USA" -, como alguns dos mais importantes grupos vocais de todos os tempos (os monumentais Temptations, os excelentes Four Tops), o mais famoso girl group da história (as Supremes de Dianna Ross, cuja biografia disfarçada pôde ser vista nas telas há três anos: ‘Dream Girls – Em Busca de Um Sonho’, com Beyoncé fazendo o papel de uma mais ou menos plausível Diana Ross, Jamie Foxx pintando o retrato de um Gordy cretino e Eddie Murphy utilizando-se de aspectos da personalidade de Marvin Gaye). Além disso, o selo foi o responsável pelo lançamento do futuro rei do pop, inicialmente acompanhado de seus irmãos e logo dando os primeiros passos solo.

Nos CD’s lançados no Brasil pela Universal, basicamente constam os hits que fizeram a fama e engordaram os cofres da gravadora: a citada ‘What’s Goin’ On’, mais ‘Mercy, Mercy Me (The Ecology)’ – também do álbum ‘What’sGoin’ On’ -, ‘Let’s Get It On’ e ‘I Heard It Through the Grapevine’, de Marvin Gaye; ‘My Girl’, ‘Ain’t Too Proud to Beg’, ‘Just My Imagination (Running Away With Me)’ e a obra-prima ‘Papa Was a Rolling Stone’, dos Temptations (logo, contemplados tanto na fase inicial, dos hits pueris, quanto na mais hard, a psicodelia funky do final dos 60/início dos 70); ‘You Can’t Hurry Love’ e ‘Baby Love’, das Supremes; ‘I Want You Back’, ‘I’ll Be There’ e ‘ABC’, dos Jackson 5; e singles clássicos como ‘Ben’ (Michael Jackson), ‘The Tracks of My Tears’ (Smokey Robinson & The Miracles), ‘War’ (Edwin Starr), as deliciosas ‘Nowhere to Run’ e ‘Dancing in the Street’, com Martha Reeves & The Vandellas, a arrepiante ‘Reach Out (I’ll Be There)’, dos Four Tops, e mela-cuecas inesquecíveis, como ‘Easy’ (Commodores), ‘Endless Love’ (Dianna Ross & Lionel Richie) e ‘You Are Everything’ (Diana & Marvin). Duas ressalvas – na verdade, três: a) a edição americana tem 61 faixas, e não apenas 50, como a lançada aqui, sendo que apenas 28 coincidem nos dois lançamentos. Pérolas como ‘Superstition’ (Stevie Wonder), ‘Got To Be There’ (Michael Jackson), ‘Brick House’ (Commodores), ‘I Can’t Help Myself (Sugar Pie, Honey Bunch)’ (Four Tops) 'Sir Duke’ e ‘Master Blaster (Jammin')’ (Stevie Wonder), ‘All Night Long’ (Lionel Richie – lembra a propaganda do cigarro?) e as versões de ‘I Say a Little Prayer’ (por Martha Reeves & The Vandellas), ‘Jumpin’ Jack Flash’ (Thelma Huston) e ‘You’ve Got a Friend’ (Michael) acabaram ficando de fora da edição brasuca; b) como o foco são os grandes hits, a seleção musical acabou sendo meio manjada, qualquer amante da música negra americana já possui a grande maioria das canções no seu acervo – e ainda por cima, a escolha acabou deixando de lado os temas mais complexos (e por vezes mais importantes) de artistas como Marvin e Stevie – especialmente nos anos 70, após o “grito de liberdade” de ambos. Mas há, claro, as vantagens: pra uma introdução pelo universo da gravadora, a compilação é prefeita, apresentando todos os artistas mais importantes do selo, e a edição brasileira, além dos greatest hits super conhecidos, traz preciosidades como ‘Going to a Go Go’ (com The Miracles, gravada nos anos 80 pelos Stones), ‘It’s a Shame’, com os Spinners, e ‘What Becomes of the Brokenhearted’, com Jimmy Ruffin.

De qualquer maneira e sob qualquer ponto de vista, ‘Motown 50 é um ótimo investimento. Se a grana estiver sobrando, dá pra optar pela caixa (importada) ‘The Complete # 1s’, de 10 CDS (!!!!!), que traz todas as 191 músicas da história da gravadora a alcançarem o topo das paradas de sucesso nestes 50 anos – o brinquedinho é tão caprichado que ainda vem no formato da sede da gravadora (“Hitsville USA”, manja?) – mas além de poder aquisitivo, o investimento exige pressa, pois trata-se de uma edição limitada. Tamanho preciosismo, contudo, não é lá tão necessário. Mais vale ir atrás dos álbuns clássicos do selo – como ‘All Directions’ e ‘Cloud Nine’ (Temptations), ‘Music of My Mind’, ‘Talking Book’, ‘Innervisions’, ‘Fullfillingness’ First Finale’ e ‘Songs in the Key of Life’ (Stevie Wonder), ‘What’s Goin’ On’, ‘Let’s Get It On’, ‘I Want You’ e ‘Here, My Dear’ (Marvin Gaye), ‘Live!’ (Commodores), ‘Diana Ross Presents The Jackson 5’ e ‘ABC’ (Jackson 5), a caixa de 4 CDs ‘Fourever’, dos Four Tops, o box (4 CDs) ‘The Supremes’, a ‘The 35th Anniversary Collection’ (4 CDs) de Smokey Robinson & The Miracles, …

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