quarta-feira, 4 de março de 2009

Um dia numa locadora perto de você (1) - Cassavetes


Que as nossas locadoras apresentam sérias lacunas, qualquer cinéfilo que se preze sabe, mas é preciso admitir: a coisa já foi muito pior. De tempos pra cá, com a entrada no mercado do DVD de distribuidoras como a maranhense Lume, a pernambucana Aurora (fechou?), sem falar na Versátil e na Continental e suas ‘filiais’, Magnus Opus, Wonder Video e Silver Screen Collection (a despeito do pouco capricho com que embala o material, dos erros freqüentes de tradução e das cópias que simplesmente teimam em trancar no aparelho), a oferta de clássicos e filmes de arte melhorou substancialmente. Bresson, Buñuel, Godard, Truffaut, Rohmer, Bergman, Visconti, Fellini, Rosselini, Dreyer e inúmeros outros mestres têm quase todos os seus títulos mais significativos à disposição nas gôndolas dos estabelecimentos que têm a dignidade de oferecer ao público mais do que os manjados blockbusters do momento. Isso sem falar em filmes cultuados, como ‘Felicidade’, ‘Leòlo’, ‘A Canção da Estrada’, ‘O Quarto Homem’, ‘Os Olhos Sem Rosto’, ‘Freaks’, ‘Aconteceu Perto de sua Casa’, as provocações de Andy Warhol, os clássicos blaxploitation dos 70, as podreiras de John Waters, a primeira new wave japonesa e outros tantos. Até Mizoguchi e Ozu, que jamais tiveram um filme menor que fosse lançado por aqui em VHS, começaram a receber a atenção que merecem. Só o que não dá pra entender é o que acontece com o pai espiritual do cinema independente americano. Um mistério.

John Cassavetes foi ator conhecido (‘Os Doze Condenados’, de Aldrich, ‘O Bebê de Rosemary’ , de Polansky), mas sua grande contribuição foi atrás das câmeras (e também no set, comandando exaustivos ensaios com seu atores, e à frente da folha de papel, escrevendo e reescrevendo seus roteiros incontáveis vezes à medida que os intérpretes iam lhe revelando coisas a respeito dos personagens): goste ou não, quem vê um filme que leva sua assinatura jamais esquece. Paralelamente à (nova) revolução francesa da sétima arte levada a cabo no final dos anos 1950 pela turma dos "jovens turcos" dos Cahiers Du Cinéma, o novaiorquino descendente de gregos e egresso dos teatros, já na estréia, em ‘Shadows’ (1959, portanto o mesmo ano de lançamento dos marcos iniciais da nouvelle vague, o ‘Acossado’ de Godard e ‘Os Incompreendidos’ de Truffaut), também colocava sua câmera nervosa na rua, utilizava atores não profissionais, usava e abusava de closeups pra dissecar seus personagens, falava sobre os dramas de pessoas reais – e pra se ter uma ideia da determinação do cara, em um programa de rádio ao qual comparecera pra promover ‘Um Homem Tem Três Metros de Altura’, de Martin Ritt, seu sexto filme como ator, ele não só declara em alto e bom som que pretende dirigir um filme "sobre pessoas autênticas", como conclama a audiência a contribuir com dinheiro para isso. Saiu de lá com 2 mil dólares (!), provavelmente o primeiro e único caso na história do cinema americano em que o público dá o pontapé inicial para a realização de um filme, que custaria ao final a bagatela de 40 mil dólares.

O segredo dos filmes de Cassavetes (1929-1989) era seu método. Em primeiro lugar, com a exceção de sua curta passagem pelos grandes estúdios, só trabalhou com produtores com quem mantinha afinidades, que compreendiam suas ideias e apostavam nelas. Os atores não eram apenas cúmplices mas colaboradores, dividindo a criação com o diretor: os ensaios intermináveis e a liberdade para improvisar acabavam por redelinear não apenas os personagens, mas a própria trama, reescrita várias vezes ao longo das filmagens – que, por sua vez, eram levadas a cabo como um work in progress, onde havia um roteiro, sim, mas que estava ali apenas para servir de bússola, dando o norte para um destino já traçado, mas não impondo limitações, deixando margem para possíveis alterações no caminho. Um improviso mais ou menos calculado, portanto, de onde o diretor, atento a todos os detalhes, extraía o que interessava, aquele algo mais revelador do inesperado. Por isso, os filmes de Cassavetes são tão vivos, muitas vezes parecendo ser a própria vida real que transcorre na tela ou um daqueles documentários ao estilo ‘cinema verdade’ – por sinal, uma das influências do diretor, além do neo-realismo italiano e do naturalismo televisivo, bem conhecido de seus tempos de ator.

No final de 2007, em uma rara oportunidade daquelas a se lamentar profundamente se perdida, a Casa de Cultura Mário Quintana, em parceria com a distribuidora/cineclube carioca Filmes do Estação, exibiu um ciclo com cinco filmes do de Cassavetes. Um breve resumo de cada um deles – qualquer um cairia muito bem nas prateleiras:

‘SOMBRAS’ (‘SHADOWS’), 1959
Estréia na direção de Cassavetes, um filme que, se não chega a ser um marco do cinema moderno da estatura de ‘Cidadão Kane’, sem dúvida pode ser considerado uma ruptura com o modelo representado pelos estúdios: a câmera, com singular liberdade, acompanha o cotidiano de três irmãos negros e suas frustrações. Benny, o revoltado, quer ser saxofonista; Hugh é cantor de jazz, se apresenta em bares e sonha em dar um salto na carreira; Lelia sonha em ser escritora, e em meio a um processo de auto-descoberta se vê apaixonada por Tony, uma rapaz branco, que, ao se dar conta de que ela é ‘de cor’ (ela é mestiça, ao contrário dos irmãos, cuja negritude é mais evidente), a abandona. A vida pulsa e o jazz dá o ritmo neste clássico do cinema independente americano.

‘FACES’, 1968
Esta crônica de um casamento desgastado pelo tédio é mais um clássico na filmografia de Cassavetes. Richard (John Marley, excelente) e Maria (Lynn Carlin) estão juntos há 14 anos, o que não impede que ele vá fazer farra no apartamento de uma prostituta (interpretada pela grande Gena Rowlands, mulher de Cassavetes, em seu primeiro papel de maior relevo nos filmes do marido), enquanto ela sai com suas amigas igualmente de saco cheio do casamento e caba se envolvendo com um tipinho com pinta de gigolô (Seymour Cassel) que joga seu charme para as quatro coroas. As aventuras de uma noite só do casal só lhes trarão mais frustração. O título não só sugere o caráter analítico do filme como meio que escancara a técnica empregada para esta devassa da alma dos personagens: jamais se viu até então no cinema americano tantos closes em um filme só quanto nesta obra de Cassavetes – de dar inveja a Dreyer e Bresson.

‘UMA MULHER SOB INFLUÊNCIA’ (‘A WOMAN UNDER THE INFLUENCE’), 1974
Um dos filmes mais conhecidos e estimados do diretor e um dos maiores tour-de-force interpretativos de que se tem notícia: a bipolar Mabel de Gena Rowlands é seguramente uma das mais densas atuações de toda a história do cinema, só vendo pra crer. Seu marido, o trabalhador da construção civil Nick (Peter Falk, ele mesmo, o Columbo da série de TV!), não compreende o comportamento exuberante da mulher em seus picos de euforia, assim como o restante dos familiares e amigos, que têm dificuldade em lidar com a situação. Crônica da vida pequena de uma família de classe média baixa americana, retrato da incompreensão daquilo que não se mostra como ‘normal’, um dos grandes filmes americanos dos anos 1970 (e não só), talvez o melhor de todos os Cassavetes.

‘O ASSASSINATO DE UM BOOKMAKER CHINÊS’ (‘THE KILLING OF A CHINESE BOOKIE’), 1976
Com pinta de film noir, acompanha a angústia do dono de uma boate que é encarregado de matar o bookmaker do título pra compensar a dívida que tem com mafiosos. O excelente Ben Gazzara é o empresário da noite em apuros – e crise de consciência.

‘NOITE DE ESTRÉIA’ (‘OPENING NIGHT’), 1977
Mais uma interpretação histórica da sra. Cassavetes, aqui na pele de Myrtle Gordon, uma atriz de teatro em crise de identidade, que entra definitivamente em parafuso quando uma fã, após lhe pedir autógrafo, morre atropelada – lembrou do ‘Tudo Sobre Minha Mãe’ de Almodóvar? Pois foi daqui mesmo que saiu a inspiração, o filme do realizador espanhol inclusive é dedicado a Gena. A sequência da apresentação da peça, com Myrtle em frangalhos e a produção e elenco desesperados, é peça de antologia.

Vale ainda ressaltar que, embora os filmes de John Cassavetes jamais tenham merecido a atenção das distribuidoras no Brasil, já foi lançado por aqui um livro sobre sua vida e obra, numa daquelas incongruências bem próprias do mercado nacional: "John Cassavetes – Biografia, análise crítica e filmografia completa do diretor de ‘Gloria’ e ‘Faces’", do francês Thierry Jousse (ex-redator-chefe da Cahiers Du Cinéma), saiu em 1992 pela Nova Fronteira e trazia entrevistas com amigos próximos e colaboradores do cineasta: o ator Ben Gazzara e os faz-tudo Al Ruban e Seymour Cassel. Claro que a obra está esgotada há anos, podendo ser encontrada, com muita sorte, em sebos. Quanto aos filmes, estes nem em sebo: só ‘Amantes’ (‘Love Streams’, seu penúltimo filme, de 1984) pode ser encontrado em poquíssimas locadoras que ainda mantêm acervos em VHS, ou conferido na programação do Telecine Cult, onde passa ocasionalmente -além de ‘A Canção da Esperança’ (‘Too Late Blues’, título de 1961, primeira incursão hollywoodiana do realizador, naturalmente com algumas concessões não vistas antes em seus trabalhos independentes). O resto, só importando.

PS – ‘Shadows’ acaba de ser relançado no mercado americano (certamente como comemoração pelos 50 anos de seu lançamento) em DVD pela prestigiada Criterion Collection, em edição no capricho (pra variar): nos extras, tem entrevistas com a atriz Lea Goldoni e o produtor associado e parceiro de trago Seymour Cassel, uma rara filmagem em 16mm de uma das workshops de Cassavetes, um documentário sobre a restauração do filme e um livreto contendo um ensaio do crítico Gary Giddins e um texto de 1961 do próprio Cassavetes sobre o filme. Coisa fina mesmo. Mas por aqui, uma mera ediçãozinha simples já serviria pra preencher uma lacuna e tanto.

4 comentários:

  1. Rapaz. Grande texto (isto é sim um agradecimento). Vou dar uma vasculhada pela Paulicéia e seus sebos fantásticos - não duvide, são mesmo, cada coisa rara a bom preço dando sopa - e catar algo de Mr and Mrs Cassavetes. Oxalá que eu tenha sorte. Por aqui, entre um lavoro e outro, lendo Talese e o fabuloso Fama e Anomimato. Esse sabe o jeito. Abraços José e sorte com a Yoda.

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  2. Se descolares alguma coisa aí tipo 'precinho d'ocasião', me fala. Tô duraço, mas se aparecer uma daquelas ofertas imperdíveis com condições "a perder de vista", dá um grito daí. O 'Fama e Anonimato' eu li no finzinho do ano passado, do c*, principalmente o perfil do Sinatra e a história toda da ponte Narrows Graziano (ou sei lá que nome de carcamano que leva o negócio). Bala mesmo - e nem é preciso comentar (mas ue comento): já não se faz mais repórteres como antigamente. Quanto à dona Yoda, como chamaste - costumo chamá-la de Yeda Furacão, evidentemente que pela questão do temperamento fora-da-casinha e não por alguma semelhança com a Ana Paula Arósio, que não há -, a batata dela tá assando bonito, é apenas uma questão de tempo cair a casa (literalmente) dessa sra., pois as provas contra ela são consistentes e já já vão aparecer. Até no 'Sala de Redação', programa, afinal, da empresa que a vinha sustentando até aqui, já se comentou a assunto nestes termos: o Cacalo disse que o Pedro Ruas (que é do Conselho do Grêmio, certo?) tá muito bem embasado. As figuras do PSOL, por mais destrambelhadas que possam ser (e a Luciana até que hoje em dia tá bem mais calma), não iam dar um tiro no pé, pondo toda a credibilidade do partido - regional e nacionalmente - em jogo por conta de um simples boato, e aqui as pessoas já tão se dando conta de que, se a barra não estivesse suja, Yeda e cia. já deveriam estar processando os caras. Não processam pelo óbvio motivo de que, para se defender, eles irão direto ao MP, à Justiça Federal, à PF, ao Tribunal de Contas e ao raio que os parta exigir as provas a que se referiram pra se defender - e aí os caras terão que der, pois quem é acusado tem o direito constitucional da ampla defesa. Pode notar como a postura da Yeda mudou de uns dias pra cá, baixou a bola direitinho, porque sabe que a coisa tá preta pro lado dela. O PSDB entrar com representação contra a Luciana é só jogo de cena, afinal eles não podem assistir a tudo sem reagir, é lógico que vaõ defender ela e o seu governo no RS, pois ano que vem tem eleição. e quando a coisa explodir, naturalmente vão condená-la e dizer que não sabiam de nada do que ocorria por aqui. Esperemos. Abraço, meu velho, manda um e-mail aí pro meu endereço aquele da mensagem inicial que eu te mandei, pra seguirmos nos falando. Grande Play!

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  3. Ô meu irmão: lembraste da Arósio Furacão e me veio à mentte a cena da peitolinha dela roçando a franjinha do padre Santoro num amanhecer. Bem, mas não descambemmos para a chinelagem, senão dona Yoda nos invejará e tentará nos superar. No que, aliás, vem conseguindo, ao que leio na Nova Corja (novacorja.org.br) e no Graciliano Rocha, da Folha, com leves estocadas no Estadão - porque ZH e Correião nada dizem do caso, dos suicídios mal-explicados, enfim.
    Falando da série da Arósio, aliás, num sebo aqui perto tem a caixa em ótimo estado por 20 pau. E, modéstia se me faça pela ousadia, mas aquela foi a última boa minissérie global produzida. Hoje me parece que a Globo tá fazendo novela no cinema, nas minisséries, até no JN, é uma overdose de novela que eu larguei de mão. E viva a Record que ataca de Mutantes e pastores malucos, he he he.
    Sobre o Cassavetes, tem uma filial da Livraria da Vila na minha rua - estou na aconchegante Fradique Coutinho, em plena Vila Madalena e sem disposição para o álcool, falta grave, mas esgotei minha cota. Mas voltando à referida livraria, o acervo dos caras é de fazer até mesmo frente com à Cultura e à Fnac. No preço idem, registre-se. Bem, o amigo é viajado e deve conhecer os caras. Senão, numa vinda a Sampa, serei vosso guia. Truffaut, Buñuel, os fodidões todos estão lá e tem absolutamente tudo, arrisco dizer. E os menos consagrados (ou imerecidamente desconhecidos) também estão nas prateleiras, donde o Mr e Mrs Cassavetes, não te duvido. E pesquisarei para o amigo.
    Dinheiro? Coincidência, estamos todos a espera dele. Forza Obama. Vai na carona, Luleta. Cai fora Yoda. E-mail pessoal é aquele jfosterberg@celsohotmail? Voltamos a falar por lá, amigo véchio.

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  4. O e-mail é esse mesmo - sem essa chinelagem que tu botaste aí do 'celso hot'. Aliás, tá esfriando cada vez mais. Por sinal, um amigo meu gremista chama o cara simplesmente pelas inicias, 'cjr' - assim mesmo, escrevendo em minúsculas -, pois não se digna sequer a pronunciar o nome do cara. Agora, pelo menos pra vocês agora tá caindo de maduro demitir o sujeito, pior é no caso do COLORADo, que o TITE vai ganhando (aos trancos e barrancos) e segue enganando. Sobre a loja que tu mencionas aí, confesso que nunca ouvi falar. Não posso nem pensar em fazer novos investimentos no momento, mas sempre tem negócio quando uma ofertinha impredível aparece. E a nossa querida Vila Madalena aí, hein? Tás bem, hein, meu velho! Só imagino que dormir cedo aí se torne impraticável. Aqui, eu e Neném morávamos na 'low city' e tivemos de mudar, por basicamente três motivos: a) o negócio cresceu demais como 'bairro boêmio' da cidade, extrapolou, um mínimo de sossego já era; b) o ap ficou pequeno pro casal, o gato, o cachorro, minhas coisas, coisas dela; c) a vizinhança era pouco recomendável - em certos momentos, parecia aquele pessoal vizinho do Kowalski e sua mulher, em 'Um Bonde Chamado Desejo', Tenesse Williams na veia (aliás, na garganta), e após a enésima altercação com meu vizinho (com direito a cenas de pugilato ... bah, dava até título de filme: em vez de "Cenas de Caça na Baixa Baviera", "Cenas de pugilato na Cidade Baixa"), concluímos que tava na hora de tomar outro rumo. E sobre Hilda Furacão, concordo plenamente - se bem que não vi mais nenhuma série global depois, só uns trechos de 'Maysa' pela personagem, porque o diretor é muito ruim, não é capaz de fazer coisa boa nem quando trata da vida da mãe, os atores, salvo a guria, excelente, que é gaúcha (amiga de uma amigona minha), eram péssimos. E sobre tia Yeda, só estamos aguardando o desfecho. Já vejo a gurizada gritando em frente o Piratini: "Adeus, Yeda! Adeus, Yeda!". Abraço, rapá, assim que tiver uma oportunidade, vou aí pra sampa te fazer uma visita. Let's keep in touch, JF.

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