Danny Boyle, sem dúvida. O diretor inglês, responsável por alguns filmes divertidos na década passada – ‘Cova Rasa’ (1994), ‘Trainspotting’ (1996), este considerado por alguns, com uma boa dose de exagero, "o filme britânico mais importante dos anos 90" -, ao que parece sempre sonhou em se tornar um nome viável na maior indústria de cinema do mundo. Com os trabalhos citados, provou ser um contador de histórias competente, responsável por um bom filme de suspense (o primeiro) e de uma abordagem um tanto superficial do universo junkie (o segundo), cujos principais interesses deviam-se às referências pop (filme-citação por excelência, 'Trainspotting' teve destrinchadas as origens de várias de suas sequências pela revista americana Details à época do lançamento nos EUA), à trilha sonora bacana (Iggy, Lou Reed, Primal Scream, Leftfield, Pulp, ...) e aos personagens, engraçados e carismáticos. Por conta do êxito doméstico, recebeu o inevitável convite pra trabalhar em Hollywood, mas não teve muita sorte – o bobinho ‘Por Uma Vida Menos Ordinária’ e o aborrecido ‘A Praia’ não causaram maior repercussão (merecidamente, diga-se de passagem). No retorno à Grã- Bretanha, voltou a conviver com o sucesso por conta do apocalíptico ‘Extermínio’, de ‘Caiu do Céu’ (uma espécie de nova visita ao tema de ‘Cova Rasa’ – a cobiça e suas implicações morais – , só que transposta para o universo infantil), e da ficção científica ‘Sunshine – Alerta Solar’. Encorajou-se então a tentar Hollywood de novo e parece que agora se deu bem de vez: adaptando o bestseller ‘Sua Resposta Vale Um Bilhão’, de Vikas Swarup, levantou oito Oscars na última cerimônia de entrega do prêmio, tornando-se um dos 15 maiores ganhadores da octogenária história da premiação e o vice-campeão da década (três a menos que ‘O Senhor dos Anéis – O retorno do Rei’, de 2003, recordista histórico ao lado de ‘Ben Hur’ e ‘Titanic’), pra surpresa de muita gente, que não tinha mais o diretor como um possível nome quente em Hollywood. Mas cá entre nós, não era tão difícil assim de prever o resultado. ‘Quem Quer Ser um Milionário?’ é claramente programado pra isso.
A história dos irmãos Salim e Jamal e da amiga Latika, que sobrevivem a uma chacina em sua favela e vão enfrentar as agruras das ruas de Mumbai comove, sem dúvida. Fica-se de coração na mão a cada episódio vivido pelo trio, que irá se separar e se reencontrar mais de uma vez ao longo de uma aparentemente interminável via-crúcis, cuja esperança de desafogo surge para Jamal, o protagonista do filme, quase que acidentalmente no programa televisivo de perguntas e respostas que promete uma fortuna a seu vencedor. Mas a maneira como Boyle leva adiante este enredo de percalços, tragédias, perseverança – e uma colossal dose de sorte – é que é problemática. As referências utilizadas por ele são as mais manjadas possíveis: falou-se muito em ‘Cidade de Deus’, em função da fotografia em cores quentes (a periferia bem fotografada), do dilema dos protagonistas (um escolhe manter-se íntegro, o outro não hesita em abraçar o crime), no uso ostensivo da trilha sonora pop (saem o samba-soul de Tim Maia, Hyldon e Melodia, o funk de James Brown e o samba de raiz de mestre Cartola para a entrada do batidão eletrônico exuberante, com farta munição étnica, e que, mesmo sendo cool - todas as trilhas dos filmes de Boyle são, repito -, cada vez que surge nos alto-falantes atordoa o espectador de uma tal maneira e com uma tão exagerada intenção de chamar da atenção para si que só o ‘Olga’ havia conseguido até hoje), e até no detalhe da galinha correndo em meio à perseguição na favela, mas não é só no mais bem sucedido filme de gângsteres saído do cinema terceiro mundista que o diretor inglês vai buscar sua “inspiração”. Da já nem tão recente onda de filmes asiáticos, ele pega emprestado o tom sentimental (e a perspectiva das crianças) dos filmes iranianos (que por sua vez tomaram emprestado este foco do neo-realismo italiano), a câmera frenética dos filmes de ação de Hong Kong, Taiwan, China e Japão, e o resto ele chupa de Bollywood mesmo – o flerte com a indústria que mais produz filmes no mundo, além do multiculturalismo por ora em voga, é jogada ensaiada do diretor e seus (novos) chefões hollyoodianos. (Voltando a ‘Cidade de Deus’, o curioso é que quando concorreu ao prêmio de filme estrangeiro há poucos anos, o que se disse à época é que era violento demais pra sensibilizar os integrantes mais conservadores da Academia; ‘Quem Quer Ser um Milionário?’ é quase tão violento quanto – mas como o final, bem ao gosto dos melodramas hollywoodianos, aponta para uma saída, foi mais fácil convencer os caras, decerto. E a culpa do primeiro mundo em relação ao terceiro, de certa forma, acaba sendo diluída.)
Mas o pior de tudo mesmo é que a narrativa jamais convence. Muito já se falou sobre a questão da verossimilhança no cinema: para boa parte dos espectadores comuns, um valor em si – "Ah, não! Eu não gosto de filmes em que acontecem coisas impossíveis (ou pouco prováveis)!"; para cinéfilos experientes, a ideia de que um filme no mais das vezes equivale a um sonho e não a um recorte da realidade, tendo muito mais a ver com o imaginário do realizador – basta ver o caso de Hitchcock: por anos a fio desconsiderado pela crítica americana, apesar do imenso sucesso de público, uma das ressalvas que se fazia a seus filmes era de que o enredo, tomado como retrato do real, não sobreviveria, pois continham inúmeros detalhezinhos difíceis de engolir numa trama “realista”. Ao velho Hitch, sábio como era, só restava devolver a ironia dos críticos - “lá vêm nossos amigos, os ‘verossímeis’” -, já que estes não perceberam, até aparecerem Truffaut, Rohmer, Chabrol e cia., que o que interessava nas histórias supostamente com furos de Hitch não era a plausibilidade do enredo, mas o movimento interno, os tormentos, as dúvidas, as fraquezas e obsessões dos personagens, e que sua mise en scène, marcadamente cenográfica, tinha mais a ver com uma atmosfera onírica do que com a visão humana da realidade nua e crua (mesma coisa pode-se dizer do sangue de mentirinha, dos diálogos cartunescos e dos cenários fake dos filmes de Tarantino ou dos absurdos davidlynchianos). Só que em ‘Slumdog’ temos um problema sério de ordem estética: ao mesmo tempo em que a encenação nos apresenta um retrato realista, o tom é da mais escancarada fábula, e uma coisa meio que não bate com a outra – é preciso ser mestre pra casar as duas coisas (como De Sica em ‘Milagre em Milão’, por exemplo). E os diálogos, ... cruzes! O irmão encurralado na banheira, à espera da chegada do bando que acaba de trair, mas aliviado pela chance de Jamal e Latika escaparem ao seu desafortunado destino: “Deus existe” (ou algo assim). E Jamal, a celebridade instantânea mais comentada do momento no país, por conta de sua participação no programa de perguntas e respostas, esperando na estação de trem com a mesma roupa com que se apresentou na TV e acabou de ganhar o cobiçadíssimo prêmio, ao encontrar, incóginto (!!!!!), sua amada: “Eu sempre acreditei”. É dose.
Parafraseando a cena final, realmente tava escrito que ‘Slumdog’ iria comover a Academia, levantar uma montanha de Oscars e fazer de seu diretor definitivamente um nome quente em Hollywood: trata-se do mais escancarado produto calculado apresentado pelos grandes estúdios entre os concorrentes ao prêmio este ano – nem ‘Benjamin Button’ e ‘Foi Apenas Um Sonho’ abusam tanto. Boyle, inclusive, é o nome mais provável pra dirigir o próximo filme do 007, o que, convenhamos, é bem a cara dele – desde que, é claro, a nova aventura de Bond tenha um quê de politicamente correto, com algum comentário sobre a geopolítica atual (mas a partir do ponto de vista “correto”) ou um tema de grande relevância (a culpa, a ganância, a lealdade) e uma trilha sonora jóia que ele possa escolher pessoalmente. Por conta do filme-chupação por excelência que é ‘Quem Quer Ser Milionário?’ – a maior fraude e forçação de barra cinematográfica a ser contemplada pela Academia desde ‘Beleza Americana’, há exatos dez anos –, o cara chegou lá. Parabéns pra ele. Agora, autenticidade, integridade e vigor hoje se veem muito mais nos filmes do quase octogenário Clint Eastwood do que no diretor britânico trendy. E se é pra falar em cinema de verdade feito na Índia, acaba de sair em DVD a sensacional “Trilogia de Apu” – ‘A Canção da Estrada’ (1955), ‘O Invencível’ (1956) e ‘O Mundo de Apu’ (1959) – de Satyajit Ray, o eterno mestre do filme indiano, descoberto por Jean Renoir e “aluno” de De Sica. É cinema feito com o coração, sem ligar pra bilheteria ou premiações.
A história dos irmãos Salim e Jamal e da amiga Latika, que sobrevivem a uma chacina em sua favela e vão enfrentar as agruras das ruas de Mumbai comove, sem dúvida. Fica-se de coração na mão a cada episódio vivido pelo trio, que irá se separar e se reencontrar mais de uma vez ao longo de uma aparentemente interminável via-crúcis, cuja esperança de desafogo surge para Jamal, o protagonista do filme, quase que acidentalmente no programa televisivo de perguntas e respostas que promete uma fortuna a seu vencedor. Mas a maneira como Boyle leva adiante este enredo de percalços, tragédias, perseverança – e uma colossal dose de sorte – é que é problemática. As referências utilizadas por ele são as mais manjadas possíveis: falou-se muito em ‘Cidade de Deus’, em função da fotografia em cores quentes (a periferia bem fotografada), do dilema dos protagonistas (um escolhe manter-se íntegro, o outro não hesita em abraçar o crime), no uso ostensivo da trilha sonora pop (saem o samba-soul de Tim Maia, Hyldon e Melodia, o funk de James Brown e o samba de raiz de mestre Cartola para a entrada do batidão eletrônico exuberante, com farta munição étnica, e que, mesmo sendo cool - todas as trilhas dos filmes de Boyle são, repito -, cada vez que surge nos alto-falantes atordoa o espectador de uma tal maneira e com uma tão exagerada intenção de chamar da atenção para si que só o ‘Olga’ havia conseguido até hoje), e até no detalhe da galinha correndo em meio à perseguição na favela, mas não é só no mais bem sucedido filme de gângsteres saído do cinema terceiro mundista que o diretor inglês vai buscar sua “inspiração”. Da já nem tão recente onda de filmes asiáticos, ele pega emprestado o tom sentimental (e a perspectiva das crianças) dos filmes iranianos (que por sua vez tomaram emprestado este foco do neo-realismo italiano), a câmera frenética dos filmes de ação de Hong Kong, Taiwan, China e Japão, e o resto ele chupa de Bollywood mesmo – o flerte com a indústria que mais produz filmes no mundo, além do multiculturalismo por ora em voga, é jogada ensaiada do diretor e seus (novos) chefões hollyoodianos. (Voltando a ‘Cidade de Deus’, o curioso é que quando concorreu ao prêmio de filme estrangeiro há poucos anos, o que se disse à época é que era violento demais pra sensibilizar os integrantes mais conservadores da Academia; ‘Quem Quer Ser um Milionário?’ é quase tão violento quanto – mas como o final, bem ao gosto dos melodramas hollywoodianos, aponta para uma saída, foi mais fácil convencer os caras, decerto. E a culpa do primeiro mundo em relação ao terceiro, de certa forma, acaba sendo diluída.)
Mas o pior de tudo mesmo é que a narrativa jamais convence. Muito já se falou sobre a questão da verossimilhança no cinema: para boa parte dos espectadores comuns, um valor em si – "Ah, não! Eu não gosto de filmes em que acontecem coisas impossíveis (ou pouco prováveis)!"; para cinéfilos experientes, a ideia de que um filme no mais das vezes equivale a um sonho e não a um recorte da realidade, tendo muito mais a ver com o imaginário do realizador – basta ver o caso de Hitchcock: por anos a fio desconsiderado pela crítica americana, apesar do imenso sucesso de público, uma das ressalvas que se fazia a seus filmes era de que o enredo, tomado como retrato do real, não sobreviveria, pois continham inúmeros detalhezinhos difíceis de engolir numa trama “realista”. Ao velho Hitch, sábio como era, só restava devolver a ironia dos críticos - “lá vêm nossos amigos, os ‘verossímeis’” -, já que estes não perceberam, até aparecerem Truffaut, Rohmer, Chabrol e cia., que o que interessava nas histórias supostamente com furos de Hitch não era a plausibilidade do enredo, mas o movimento interno, os tormentos, as dúvidas, as fraquezas e obsessões dos personagens, e que sua mise en scène, marcadamente cenográfica, tinha mais a ver com uma atmosfera onírica do que com a visão humana da realidade nua e crua (mesma coisa pode-se dizer do sangue de mentirinha, dos diálogos cartunescos e dos cenários fake dos filmes de Tarantino ou dos absurdos davidlynchianos). Só que em ‘Slumdog’ temos um problema sério de ordem estética: ao mesmo tempo em que a encenação nos apresenta um retrato realista, o tom é da mais escancarada fábula, e uma coisa meio que não bate com a outra – é preciso ser mestre pra casar as duas coisas (como De Sica em ‘Milagre em Milão’, por exemplo). E os diálogos, ... cruzes! O irmão encurralado na banheira, à espera da chegada do bando que acaba de trair, mas aliviado pela chance de Jamal e Latika escaparem ao seu desafortunado destino: “Deus existe” (ou algo assim). E Jamal, a celebridade instantânea mais comentada do momento no país, por conta de sua participação no programa de perguntas e respostas, esperando na estação de trem com a mesma roupa com que se apresentou na TV e acabou de ganhar o cobiçadíssimo prêmio, ao encontrar, incóginto (!!!!!), sua amada: “Eu sempre acreditei”. É dose.
Parafraseando a cena final, realmente tava escrito que ‘Slumdog’ iria comover a Academia, levantar uma montanha de Oscars e fazer de seu diretor definitivamente um nome quente em Hollywood: trata-se do mais escancarado produto calculado apresentado pelos grandes estúdios entre os concorrentes ao prêmio este ano – nem ‘Benjamin Button’ e ‘Foi Apenas Um Sonho’ abusam tanto. Boyle, inclusive, é o nome mais provável pra dirigir o próximo filme do 007, o que, convenhamos, é bem a cara dele – desde que, é claro, a nova aventura de Bond tenha um quê de politicamente correto, com algum comentário sobre a geopolítica atual (mas a partir do ponto de vista “correto”) ou um tema de grande relevância (a culpa, a ganância, a lealdade) e uma trilha sonora jóia que ele possa escolher pessoalmente. Por conta do filme-chupação por excelência que é ‘Quem Quer Ser Milionário?’ – a maior fraude e forçação de barra cinematográfica a ser contemplada pela Academia desde ‘Beleza Americana’, há exatos dez anos –, o cara chegou lá. Parabéns pra ele. Agora, autenticidade, integridade e vigor hoje se veem muito mais nos filmes do quase octogenário Clint Eastwood do que no diretor britânico trendy. E se é pra falar em cinema de verdade feito na Índia, acaba de sair em DVD a sensacional “Trilogia de Apu” – ‘A Canção da Estrada’ (1955), ‘O Invencível’ (1956) e ‘O Mundo de Apu’ (1959) – de Satyajit Ray, o eterno mestre do filme indiano, descoberto por Jean Renoir e “aluno” de De Sica. É cinema feito com o coração, sem ligar pra bilheteria ou premiações.
'A Canção da Estrada' ('Pather Panchali'), de Ray: este, sim!
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