terça-feira, 14 de abril de 2009
Assim foi Escrito (1) - Os Irmãos Karamázov (Dostoiévski)
“Meu amigo, apesar de tudo, quero ser um gentleman e que assim me tratem -, começou o visitante num acesso de amor-próprio típico de parasita e já antecipadamente conciliador e cheio de bonomia. – Sou pobre, mas ... não digo que seja muito honesto, no entanto ... na sociedade costuma-se considerar como um axioma que sou o anjo caído ... Juro que não consigo imaginar como algum dia eu possa ter sido anjo. Se eu fui alguma vez, isso faz tanto tempo que nem é pecado esquecê-lo. Hoje só dou valor à reputação de homem decente e vivo como posso, procurando ser agradável. Amo sinceramente os homens – oh, tenho sido alvo de muita calúnia! Quando vez por outra me transfiro para a Terra, aqui minha vida transcorre como se fosse algo de verdade, e é isso o que mais me agrada. É que eu mesmo, assim como tu, sofro com o fantástico, e é por isso que eu gosto do vosso realismo terreno. Aqui entre vós, tudo é especificado, aqui há fórmula, aqui há geometria, ao passo que entre nós tudo são equações indefinidas! Aqui eu vago e sonho. Gosto de sonhar. Além do mais, na Terra fico supersticioso – não rias, por favor: e é justamente isso que me agrada; tornar-me supersticioso. (...) Meu sonho é encarnar – mas que seja definitivamente, irreversivelmente – em alguma mulher de comerciante, gorda, que pese umas sete arrobas, e acreditar em tudo o que ela acredita. Meu ideal é entrar na igreja e acender uma vela de todo o coração, juro! Então seria o fim de meus sofrimentos. Também tomei gosto pelos vossos tratamentos de saúde: na primavera, ouve uma epidemia de varíola, e eu fui a uma escola me vacinar – se soubesse como isso me deixou contente! Doei dez rublos para os nossos irmãos eslavos! ... Mas não estás me ouvindo. Sabes, hoje não pareces lá muito bem – o gentleman fez uma pequena pausa. – Sei que ontem consultaste aquele médico ... então, como estás se saúde? O que o médico te disse?”
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- “Filosofando outra vez?” – Ivan rangeu os dentes com ódio.
- “Deus me livre! Mas vez por outra a gente não pode evitar umas queixinhas. Sou um homem caluniado. Tu mesmo estás me chamando de estúpido a três por dois. Logo se vê que és um jovem. Meu amigo, não se trata apenas de inteligência! Tenho por natureza um coração bondoso e alegre, ‘porque também escrevi diversos vaudevilles’. Parece que me tomas terminantemente por um Khliestakóv grisalho, e, não obstante, meu destino é bem mais sério. Por uma missão primordial, que nunca consegui entender, fui destinado a ‘negar’. Não, sai por aí negando, sem negação não haveria crítica, e que revista poderia passar sem um ‘departamento de crítica’? Sem crítica, só haveria Hosana. Mas, para viver, só o Hosana não basta, é preciso que esse Hosana passe pelo crisol da dúvida, e assim sucessivamente. Aliás, não me intrometo em nada disso, não fui eu que o criei, logo, não respondo por isso. Mas ainda assim pegaram alguém para bode expiatório, obrigaram-no a escrever no departamento de crítica e a vida começou. Nós compreendemos essa comédia: eu, por exemplo, exijo simples e francamente a minha destruição. Não, vive, dizem, porque sem ti não haverá nada. Se tudo no mundo fosse sensato, nada aconteceria. Sem ti não haveria quaisquer acontecimentos, e é preciso que haja acontecimentos. E então trabalho a contragosto para que haja acontecimentos e crio o insensato cumprindo ordem. Os homens, a despeito de toda a sua indiscutível inteligência, tomam toda essa comédia por alguma coisa séria. Nisto reside sua tragédia. E então sofre, é claro, mas ... em compensação, vivem apesar de tudo, vivem na realidade, não na fantasia; porque o sofrimento é que é vida. Sem sofrimento, que prazer poderia haver em viver? – tudo se transformaria num infinito ‘Te Deum’: é preciso uma coisa sagrada, porém meio chata. Bem, e eu? Sofro, e no entanto não vivo. Sou o x de uma equação indefinida. Sou uma espécie de espectro da vida, que perdeu todos os fins e princípios e acabou esquecendo até como se chama. Estás rindo ... não, não estás rindo, estás novamente zangado. Vives eternamente zangado, gostarias que houvesse apenas inteligência, mas torno a repetir que daria toda essa vida sob as estrelas, todos os títulos e honrarias unicamente para encarnar na alma de uma comerciante de sete arrobas e acender uma vela para Deus”.
(Trecho de ‘O Diabo. O Pesadelo de Ivan Fiodorovitch’, em OS IRMÃOS KARAMÁZOV, último romance de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e lançado no final do ano passado no Brasil, pela Editora 34, pela primeira vez no capricho, com tradução direta do russo e com base nas edições recentes, que restabeleceram o texto original a partir dos manuscritos do autor e da comparação entre as diferentes edições – a obra várias vezes foi impiedosamente mutilada em seu país, vítima da censura czarista e do período stalinista. O mais atormentado e racionalista dos três irmãos, delirante, passa a sonhar com o coisa ruim às vésperas do julgamento de seu irmão mais velho, Dimitri, acusado de ter matado o próprio pai. Ivan, dos três, é o mais intelectualizado, e segundo o tradutor Paulo Bezerra, entre todas as personagens do autor russo, é a que mais se aproxima de um alter ego de seu criador. “A construção da imagem de Ivan exigiu de Dostoievski uma excepcional capacidade de realizar numa única personagem a síntese de toda a sua erudição nos campos da literatura, da história, da filosofia e da religião, e de caracteres humanos que já se encontravam em personagens de suas obras anteriores, como Raskólnikov, de ‘Crime e Castigo’, Hippolit, de ‘O Idiota’, e Kirillov e Stavróguin, de ‘Os Demônios’, criaturas que pensam em profundidade e com seu pensamento questionam a ordem social e cósmica”. O grande momento do livro é a parábola do Grande Inquisidor, em que o niilista Ivan zomba impiedosamente da igreja em uma suposta vinda de Deus à Terra. Sabe-se que Dostoievski foi um homem religioso, ou, nas palavras de Paulo Bezerra, “conflituosamente religioso”. A edição da 34, publicada em dois volumes, ainda é enriquecida pelas excelentes ilustrações de Ulysses Bôscolo, como a imagem do demo acima.)
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