“Seguimos junto à cerca até chegar à cerca do jardim, onde as nossas sombras estavam. A minha sombra era mais alta que a de Luster na cerca. Chegamos no lugar quebrado e passamos por ele.
‘Espera aí.’ Disse Luster. ‘Você prendeu aquele prego outra vez. Será que você nunca consegue passar aqui sem prender no prego.’
Caddy me soltou e passamos para o outro lado. O tio Maury disse para a gente não deixar ninguém ver a gente, então é melhor a gente se abaixar, disse Caddy. Abaixa, Benjy. Assim, ó. Nós nos abaixamos e atravessamos o jardim, as flores raspando na gente e estremecendo. O chão era duro. Subimos na cerca, onde os porcos estavam grunhindo e fungando. Eles devem estar tristes porque mataram um deles hoje, disse Caddy. O chão era remexido e embolotado.
Fica com as mãos no bolso, disse Caddy. Senão elas congelam. Você não quer ficar com as mãos congeladas no Natal, não é.
‘Está muito frio lá fora.’ Disse Versh. ‘Não inventa de sair não.’
‘O que foi.’, disse a mãe.
‘Ele quer ir lá fora.’ Respondeu Versh.
‘Deixe ir.’ Disse a mãe. ‘Melhor ele ficar em casa. Benjamin. Pare com isso, já.’
‘Deixe, o que é que tem.’ disse o tio Maury.
‘Benjamin.’ Disse a mãe. ‘Se você não se comportar vai para a cozinha.’
‘A mamãe falou pra ele não ir à cozinha hoje não.’ Disse Versh. ‘Ela disse que tem que preparar um montão de comida.’
‘Deixe, Caroline.’ Disse o tio Maury. ‘Você vai piorar de tanto se preocupar com ele.’
‘Eu sei.’ Disse a mãe. ‘É o meu castigo. Eu acho às vezes.’
‘Eu sei, eu sei.’ Disse o tio Maury. ‘Você tem que poupar suas forças. Vou praparar um grogue para você.’
‘Isso me deixa ainda pior.’ Disse a mãe. ‘Você sabe muito bem.’
(7 de abril de 1928)
...
“Onde a sombra da ponte caía dava para enxergar bem fundo, mas não até o leito. Quando você deixa uma folha muito tempo dentro d’água o tecido desaparece e as fibras delicadas balançando devagar como o movimento do sono. Elas não encostam uma na outra, por mais que antes estivessem enredadas por mais próximas que antes estivessem dos ossos. E talvez quando Ele disser levantai-vos os olhos subam a superfície também, do fundo tranquilo do sono, para contemplar a glória. E depois de algum tempo os ferros de passar também subiriam à superfície. Escondi-os debaixo da extremidade da ponte e debrucei-me sobre o parapeito.
Não dava para ver o fundo, mas consegui ver a água fluindo numa boa profundidade até minha vista cansar, e depois vi uma sombra pendurada como uma seta gorda pendendo sobre a corrente. Efeméridas entravam e saíam da sombra da ponte bordejando a superfície da água. Se ao menos houvesse um inferno depois: a chama limpa nós dois mais que mortos. Então você terá só a mim então só a mim então nós dois em meio à reprovação e o horror além da chama limpa A seta aumentou sem movimento, então num torvelinho rápido a truta engoliu um inseto sob a superfície com aquela espécie de delicadeza gigantesca com que um elefante pega um amendoim. O vórtice aquietou-se aos poucos e seguiu correnteza abaixo e depois vi a seta outra vez, oscilando de leve ao ritmo da água sobre a qual efeméridas pousavam inclinadas. Só você e eu então em meio à reprovação e o horror emparedados pela chama limpa”
(2 de junho, 1910)
...
“Uma vez vagabunda, sempre vagabunda, é o que eu digo. O que eu digo é que a senhora é feliz se sua única preocupação é ela estar matando aula. O que eu digo é que ela deveria estar lá embaixo na cozinha agora mesmo, em vez de socada no quarto dela, lambuzando a cara com maquiagem e esperando que seis negros que nem conseguem se levantar da cadeira se não devorarem uma panela cheia de pão e carne prepararem o café da manhã dela. E a mãe diz:
‘Mas as autoridades escolares vão pensar que eu não consigo controlá-la, e isso eu não ...’
‘Ora’, eu digo, ‘a senhora não controla mesmo, é ou não é? A senhora nunca tentou nada com ela’, eu digo. ‘O que adianta começar a essa altura, quando ela já está com dezessete anos?’
Ela ficou pensando um tempo.
‘Mas o que vão pensar ... Eu nem sabia que tinha boletim. Ela me disse no outono passado que este ano tinham parado de usar boletim. E agora o professor Junkin me telefona para dizer que com mais uma falta ela vai ter que sair da escola. Como é que ela faz isso? Aonde ela vai? Você passa o dia todo no centro; você devia vê-la se ela fica na rua.’
‘É’, eu digo. ‘Se ela ficasse na rua. Imagino que se ela mata aula não é pra fazer uma coisa que ela podia fazer em público’, eu digo.
‘O que você quer dizer?’ ela pergunta.
‘Não quero dizer nada’, eu digo. ‘Só fiz responder a sua pergunta.’ Então ela começou a chorar de novo, dizendo que o sangue do sangue dela agora a amaldiçoava.
‘A senhora me perguntou’, eu digo.
‘Não estou me referindo a você’, ela diz. ‘Você é o único que não me envergonha.’
‘Claro’, eu digo. ‘Nunca tive tempo pra isso. Nunca tive tempo pra ir estudar em Harvard nem pra me matar de tanto beber. Sempre tive que trabalhar. Mas, é claro, se a senhora quiser que eu fique andando atrás dela pra saber o que ela faz, eu largo a loja e arranjo um emprego em que eu possa trabalhar à noite. Aí eu posso ficar o dia inteiro atrás dela, vigiando, e a senhora manda o Ben me substituir à noite.’
‘Eu sei que para você sou só um fardo e um estorvo’, ela diz, chorando no travesseiro.
‘E eu não sei?’, eu digo. ‘Há trinta anos que a senhora vive me dizendo isso. Até mesmo o Ben já deve estar sabendo. A senhora quer que eu fale com ela?’
‘Você acha que vai adiantar alguma coisa?’ ela pergunta.
‘Não, se a senhora descer e se meter na conversa assim que eu começar’, eu digo. ‘Se a senhora quer que ela fique sob meu controle, é só me dizer e depois não se meter. Toda vez que eu tento, a senhora se intromete e aí ela ri de nós dois.’
‘Não esqueça que ela é sangue do seu sangue’, ela diz.
‘Claro’, eu digo, ‘era justamente nisso que eu estava pensando – sangue. Na minha opinião, um pouco de sangue seria bom. Quando uma pessoa age igual a um negro, seja ela quem for, o jeito é ela ser tratada como negro.’''
(6 de abril, 1928)
...
“O dia nasceu feio e frio, uma muralha móvel de luz cinzenta vinda do nordeste, que, em vez de dissolver-se em umidade, parecia desintegrar-se em partículas minúsculas e venenosas, como a poeira que, quando Dilsey abriu a porta da cabana e dela emergiu, se cravou lateralmente em sua carne, precipitando-se não exatamente como umidade e sim como uma substância com a consistência de óleo fino, não completamente coagulado. Ela usava um chapéu de palha preto rígido equilibrado sobre um turbante e uma manta de veludo grená com uma bainha esfiapada de alguma pele anônima por cima do vestido de seda roxo, e permaneceu parada à
porta por um instante, com um rosto multifacetado e mirrado voltado para o céu inclemente, e uma mão angulosa e descorada como o ventre de um peixe, e em seguida jogou a manta para o lado para examinar a frente do vestido.
O vestido caía anguloso dos ombros, cobrindo os seios caídos, depois se retesava sobre a barriga dilatada e pendia de novo, avolumando-se um pouco acima das roupas de baixo, que ela ia removendo camada por camada à medida que a primavera se cumpria com os dias mais quentes, em cores imperiais e moribundas. Outrora fora uma mulher graúda, mas agora seu esqueleto vinha à tona, frouxamente encoberto pela pele solta que se apertava novamente sobre a barriga quase hidrópica, como se músculo e tecido fossem a coragem ou resistência que os dias ou os anos haviam consumido até que só restasse o esqueleto indômito, como uma ruína ou um marco que se elevasse sobre as entranhas sonolentas e inatingíveis, e no alto de tudo o rosto desabado que dava a impressão de que os próprios ossos estavam fora da carne, emergindo no dia implacável e exprimindo ao mesmo tempo fatalismo e a decepção atônita de uma criança, até que ela se virou, voltou para dentro de casa e fechou a porta.”
(8 de abril, 1928)
(Marco da moderna ficção americana, ‘O Som e a Fúria’, publicado em 1929, é geralmente considerado não apenas o primeiro grande romance de William Falkner como sua obra-prima. Trata da decadência de uma típica família sulista aristocrática, os Compsons, na localidade fictícia de Yoknapatawpha, e é dividido em quatro capítulos, cada qual representando um ponto de vista diferente: os três primeiros, dos irmãos Benjy, Quentin e Jason, e o último, de um narrador que a tudo observa. Benjy, que tem o mesmo nome de um tio, é retardado; Quentin, o sensível, que nutre uma paixão platônica pela irmã Caddy, estudou em Harvard e viu de longe a derrocada de sua família sem nada poder fazer, é o suicida; Jason é o revoltado, ressentido, que nutre um rancor desmedido, em especial de Caddy, por se julgar o preterido, e ainda por cima não aceita a nova ordem que coloca os judeus como os novos senhores da economia local e onde os negros já desfrutam de liberdade. Mas o interesse de ‘O Som ...’ não se resume ao enredo: lançando mão de múltiplos pontos de vista sobre os mesmos episódios, fluxo de consciência e saltos no tempo, Falukner cria uma narrativa fragmentada que forjou um estilo único e deixou inúmeras crias, várias delas crias na América Latina – Borges, Juan Rulfo, García Márques. A origem do título do livro vem do famoso monólogo no quinto ato de Macbeth, de Shakespeare, onde o protagonista define assim a vida: “uma história cheia de som e fúria, contada por um idiota, e que não significa nada”. William Cuthbert Falkner, nascido em 25 de setembro de 1897, já havia publicado outros quatro romances antes de ‘O Som e a Fúria’, e na sequência lançaria outros clássicos, como ‘Enquanto Agonizo’ (1930, disponível em edição da L&PM), ‘Luz de Agosto’ (editado aqui pela mesma CosacNaify que colocou ‘O Som ...’ no mercado com tradução de Paulo Henriques Britto em 2003), antes de uma malfadada experiência hollywwodyana nos anos 1940, onde fez amizade com Howard Hawks, Bogart e Bacall, frustrou-se, tomou todas ... O alcolismo o levou cedo, aos 64 anos de idade, em 6 de julho de 1962, não sem antes faturar o Nobel de literatura em 1949. Dizia que a fonte de sua literatura devia-se à equação “imaginação-observação-experiência”, e sobre “O Som e a Fúria”, no qual dizia ter colocado suas vísceras, garantia ser “de todos os meus livros, aquele onde o fracasso é o mais trágico e esplêndido”. Quem mergulha com vontade nesse denso retrato do sul profundo não se arrepende: é daqueles livros de que não se esquece e não se vê a hora de vivê-lo de novo.)
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