Ainda que fortemente influenciado pela inquietação do período, a força do filme do realizador Lindsay Anderson segue intacta, 41 anos após seu lançamento. Muito em função do humor: acima do tom de confronto entre os rebeldes da classe e a instituição, que tanto fez a cabeça do público jovem de sua época, ‘If...’ tem sua força na sátira ácida que faz dos "mestres" e dos veteranos da escola – e em última análise da fleumática e repressora sociedade inglesa. Mick Travis (Malcolm McDowell) é um dos estudantes de uma conservadora escola pública inglesa. Logo que aparece em cena, se apresentando para o ano letivo, percebemos tratar-se de um sujeito peculiar: ele esconde o rosto para não mostrar o bigode, que certamente não será tolerado na escola, e alguém comenta "Deus, é o Guy Fawkes de novo". Fawkes, integrante da chamada "Conspiração da Pólvora", que tentou colocar fogo no Parlamento britânico no século XVII e serviu de inspiração para a antológica graphic novel ‘V de Vingança’, de Alan Moore, é apenas a primeira das citações de insurgentes, revolucionários e ícones da esquerda que aparecem no filme: nas paredes do quarto de Travis e seus amigos, tem fotos do Che, foto de Mao ..., até do Touro Sentado. Travis é da turma dos deslocados no colégio, do grupo de inconformistas, que inclui ainda Wallace (Richard Warwick) e Johnny (David Wood). São chamados de "a escória" pelos "whips", que por sua vez são os estudantes veteranos a quem é dada pela instituição uma posição de superioridade em relação aos demais. São encarregados de fazer a ordem prevalecer, e é lógico que o conflito não vai demorar a surgir – até porque os "whips" ("chicote", em inglês, sacou?) não economizam no sadismo.
Um dos grandes motivos do impacto do filme é justamente o retrato impiedoso que faz da violência – física e psíquica – que rola intra-muros. Humilhações, surras, castigos sem motivo, ... os whips aproveitam-se de sua fajuta ascendência hierárquica pra cometer abusos à vontade. Não são os únicos: numa determinada sequência, os "juniors" resolvem pendurar um colega de cabeça pra baixo em uma das cabines do banheiro, de modo que o pobre fique com a cabeça dentro do vaso (!). Mas as principais vítimas serão o trio de rebeldes, em especial o insolente Travis: seu maior inimigo entre os "whips" é Rowntree (Robert Swann), o mais arrogante da "casta". Ele vai ter sua chance de castigar Travis e turma – que lá pelas tantas resolve sair pra anarquizar, "esgrimando" na rua, roubando uma moto de uma revenda na maior ... O negócio é que o trio é chamado à sala dos "whips" pra dar explicações e Rowntree pergunta se têm algo a dizer. Wallace e Johnny fazem que não com a cabeça. Mas Travis responde, e não de maneira muito delicada: "Sim, eu tenho. O que eu odeio em você, Rowntree, é a maneira com que dá Coca-Cola à escória e seu melhor bonequinho à Oxfam, e espera que lambamos seus dedos frígidos pelo resto de sua vida frígida". Claro que não vai ficar assim, e vai sobrar pra todos – mas Rowntree vai esmerar-se especialmente no castigo a Travis, numa das cenas mais famosas e impactantes do filme. Tampouco a "guerra" terá seu capítulo final por aqui – e na sequência final, ainda mais memorável, Travis e sua gangue vão se vingar de tudo e todos, com evidentemente satisfação. (Mesmo que tudo não passe de alegoria). ‘If...’ teve problemas com a censura, levando um certificado ‘x’ na época de seu lançamento no Reino Unido e não é difícil imaginar o por quê: as cenas do cruel castigo físico imposto aos alunos – ao que se diz, coisa comum em escolas inglesas da época –, a prática do "fagging" – idem – dos whips, que, entre outras coisas exigiam que a "escória" lhes esquentasse os assentos no banheiro, o romance entre Wallace e Bobby, que num dado momento passam a dormir juntos ... Nada disso, porém, impediu o sucesso do filme, que ainda levou o Grande Prêmio do Festival de Cannes, em 1969, ainda por cima num ano emblémático: no ano anterior, o Festival (realizado justamente no histórico mês de maio) foi paralisado por conta da insurreição do presidente do júri, Louis Malle, de Truffaut, Berri, Lelouch, Polanski e Godard, que invadiram a grande sala do Palácio, exigindo a interrupção da projeção em solidariedade aos operários e estudantes em greve e também pra protestar pela demissão pelo governo de Henri Langlois do cargo de presidente da Cinemateca da França.
O filme é dividido em oito capítulos: ‘Moradia Estudantil: O Retorno’, ‘A Academia: Mais Uma Vez Reunidos’, ‘Tempo do Período’, ‘Ritual e Romance’, ‘Disciplina’, ‘Resistência’, ‘Rumo à Guerra’ e ‘Guerrilheiros’. À cena final, que mostra Travis empenhadíssimo em sua tarefa de vingar-se contra os opressores, segue-se o enigmático título, em letras vermelhas. É certo que ‘If ...’ é uma sátira do livro ‘Stalky & Co.’, também sobre três estudantes que se rebelam, de Rudyard Kipling, cujo mais famoso poema também chama-se ‘If’ (mas sem as reticências). Entre vários aspectos que chamaram a atenção à época está uma curiosa alternância da fotografia, entre o colorid (99,99999% do filme) e o preto e branco, o que deu muito pano pra manga em termos de interpretação: a primeira vez que aparece é em uma cena em que um novo sub-mestre da escola vai conhecer seu quarto, mas a variação súbita vai ocorrer em diversos momentos, aparentemente sem nenhuma razão específica. Nos extras da edição americana em DVD – pela prestigiada Criterion Collection –, McDowell explica que a opção deveu-se basicamente por questões de economia (de tempo e dinheiro): as cenas da capela não poderiam estender-se demais, e em função do tempo limitado, Anderson optou pelo p&b. Achou bacana o resultado e acabou mantendo. Além disso, mais tomadas tiveram de ser feitas ao final das filmagens, e como o orçamento já tava estourando, vai mais preto-e-branco aí e tamos conversados. Outra peculiaridade que chama a atenção na fotografia do filme, a cargo do checo Miroslav Ondrícek – conhecido dos filmes de Milos Forman –, os tons sépia usados especialmente nas cenas surreais, se dá mais ou menos pelo mesmo motivo e não por questões estéticas: as enormes janelas do colégio afetavam as lentes, pois não hviaa como obstruir a passagem de luz, então ficou assim também.
‘If....’, o terceiro filme de Lindsay Anderson, teve Albert Finney como um de seus produtores, Chris Menges (mais tarde diretor de ‘O Império Contra-Ataca’ e ‘A Missão’) como cameraman e Stephen Frears (aclamado cineasta de ‘Ligações Perigosas’, ‘Os Imorais’, ‘A Rainha’) como assistente de direção. É herdeiro legítimo da nobre linhagem de filmes sobre rebelião juvenil, que tem seu primeiro marco lá em 1932 com ‘Zero de Conduta’, de Jean Vigo – influência mais do que confessa de Anderson em seu filme – e segue com títulos como ‘Blackboard Jungle’ (1955), de Richard Brooks, ‘Juventude Transviada’, de Nicholas Ray (também de 1955), ‘A Guerra dos Botões’ (1962), de Yves Robert, e vai dar crias indefinidamente (‘A Sociedade dos Poetas Mortos’, de Peter Weir, por exemplo). Um dos principais artífices, junto com Karel Reisz (‘Morgan!’, ‘A Mulher do Tenente Francês’) e Tony Richardson (‘The Entertainer’, ‘The Loneliness of the Long Distance Runner', ‘As Aventuras de Tom Jones’), do chamado Free Cinema inglês (a "British New Wave"), Anderson pretendia injetar consciência social nos filmes britânicos, dando voz sobretudo às classes operárias. Antes de estrear na ficção com um clássico, ‘This Sporting Life’, tido até hoje como sua obra-prima, o diretor já acumulava currículo mais que respeitável: além de realizar prestigiados documentários desde os anos 40 – seu curta ‘Thursday’s Children’ foi premiado com o Oscar em 1954 –, foi crítico da Sight & Sound, umas das principais revistas de cinema do mundo (até hoje). Sobre seu filme de estreia, aliás, cabe dizer que foi um dos mais influentes trabalhos não só do pessoal do Free Cinema mas de toda a história do filme britânico: ‘This Sporting Life’ – por sinal, prometido há tempos pra lançamento nacional pela Versátil –, com Richard Harris no papel de de Frank, mineiro que ascende à condição de ídolo do rúgbi tão rápido como põe a perder tudo em função de seu temperamento auto-destrutivo, é a principal inspiração de ‘Touro Indomável’, de Martin Scorsese, que confessou também ter batizado de Travis Bickle seu atormentado ‘Taxi Driver’ em função do personagem de Malcolm McDowell em ‘If...’. Personagem que voltaria em mais dois filmes, em diferentes épocas de sua vida, ‘O Lucky Man!’ (de 1973, Travis aqui quer se tornar um bem-sucedido profissional de vendas) e ‘Britannia Hospital’ (de 1982, aqui a sátira é ao sistema de saúde britânico), convertendo-se em uma espécie de alter ego de Anderson. Mais ou menos como o atrapalhado Antoine Doinel de Jean-Pierre Léaud foi para François Truffaut, o Travis composto por McDowell, além de perfeito como retrato do angry young man inglês típico, também serviu como uma espécie de treinamento para o papel que marcou sua vida: o sociopata Alex, de ‘Laranja Mecânica’. Anderson e McDowell trabalharam juntos também na adaptação para TV da peça ‘Look Back in Anger’ (1980), de John Osborne – tendo, mais uma vez, como personagem principal um sujeito (very very) angry.
Lindsay Anderson, nascido em Bangalore, na Índia, em 17 de abril de 1923, ainda trabalharia no teatro e na TV (realizando tanto documentários como obras de ficção) até falecer em 30 de agosto de 1994. Seu último trabalho para cinema foi ‘As Baleias de Agosto’, de 1987, com as veteraníssimas Lilian Gish (também em seu último filme) e Bette Davis (penúltimo). Relembrando seus tempos de crítico, ainda publicou um estudo sobre a obra de John Ford, ‘About John Ford’, em 1983.
Anderson: a left wing do cinema inglês
McDowell, três anos antes de 'Laranja Mecânica', como Travis: inspiração para o taxista de Scorsese e a cara do young angry man nas telas
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