Difícil achar alguém, entre aqueles que percebem o cinema como o território do sonho, do imaginário, que não seja fã de Tim Burton. O realizador americano de shape freaky, ao longo das últimas duas décadas, tem brindado os fãs com seus contos de fadas góticos e pesadelos cartunescos, porém cheios de ternura, em que não falta um olhar poético voltado aos deslocados, figuras órfãs (literal ou metaforicamente) que parecem sobrar no mundo. Quando anunciado, uns dois anos atrás, que seu próximo projeto seria uma nova versão para ‘Alice no País das Maravilhas’, seus admiradores babaram: tá aí o filme certo pro cara certo. A surreal estória infanto-juvenil de Lewis Carroll encontrara o realizador ideal, que prometia uma visão sombria – mais aproximada do livro do que as costumeiras adaptações infantis – da garotinha que cai na toca de um coelho e mergulha num universo estranho, onde vai-se deparar com figuras como a Rainha Vermelha, que manda decapitar quem a contraria, o Gato Risonho e o Chapeleiro Louco, o tipo sui generis que, entre outras coisas, é acusado pela Rainha de matar o Tempo ... Prato cheio pro cara que mostrou o herói Batman e seus arqui-inimigos Mulher Gato e Pinguim como vítimas dos mesmos fantasmas, que retratou o modo de vida americano tão bizarro quanto a peculiar figura de um garoto com tesouras no lugar das mãos e eternizou a figura do pior cineasta de todos os tempos como um vencedor – segundo seus próprios termos, é claro. Só que, infelizmente, desta vez a promessa não se cumpriu.
Tim Burton, em ‘Alice’, toma certas liberdades em relação à história, o que foi usado como argumento para algumas críticas negativas recebidas pelo filme quando de sua estreia nos EUA, mas o problema não reside aí. Ao juntar elementos de ‘No País das Maravilhas’ e sua sequência, ‘Alice no País do Espelho’, além de alterar dados – a protagonista agora não é mais a menininha do primeiro livro, nem a adolescente do segundo, mas uma garota de 19 anos prestes a ser entregue em casamento ao paspalho herdeiro de uma fortuna –, Burton ressalta o caráter pessoal da empreitada procurando manter sua essência. Alice, perplexa com o casamento que arrumaram para ela após a morte de seu pai, e sem saber o que fazer, foge no meio da festa na aristocrática Oxford programada para ser a do acerto de seu futuro em uma daquelas típicas mansões inglesas, quando vê um irriquieto coelho correndo de um lado a outro pelos jardins. Ele parece estar ali justamente para chamar sua atenção, e ela, cansada daquela gente com quem não possui qualquer afinidade, segue o coelho até sua toca. Lá, vai se deparar com um mundo que conheceu quando pequena mas do qual já não se lembra. Um mundo agora dominado pela malvada Rainha Vermelha, com o auxílio do assustador Jabberwocky. É contra o monstrengo da soberana que Alice terá de lutar, ao lado do Chapeleiro Louco e do Gato Risonho, para que a coroa seja devolvida à Rainha Branca – a do bem.
‘Alice’ traz o costumeiro apuro visual dos filmes de Burton, como era de se esperar: o desenho de produção leva a assinatura de Robert Stromberg, que levou o Oscar deste ano por seu trabalho em ‘Avatar’, e é realçado pelo 3D. O problema é que aquilo que virou quase um clichê se dizer a respeito de vários filmes de Burton – de que valem o ingresso só pelo visual, pela atmosfera criada, não precisavam nem ter história –, ironicamente acaba definindo à pefeição este seu 14º longa: ‘Alice’ quase que só vale, praticamente, pelas imagens. Os cenários e figurinos, mais uma vez, são deslumbrantes, mas incrivelmente ... falta clima. E o cineasta, o que é mais gritante, não soube manejar o desenrolar da história. O desenvolvimento dos personagens é unidimensional: todos, ainda que bem interpretados, são sem sal e sem carisma, meros coadjuvantes do requinte visual que inunda a tela – a tal ponto de fazer quase desaparecer os atores. A australiana Mia Wasikowska até que defende bem sua Alice, Helena Bonham Carter mais uma vez mostra seus dotes como a temperamental Rainha Vermelha – sem dúvida, a caracterização mais marcante do filme –, e Johnny Depp, como o Chapeleiro ... bem, Johnny Depp adiciona mais um tipo excêntrico à sua galeria, que por vezes lembra até o Willy Wonka com trejeitos de Michael Jackson de ‘A Fantástica Fábrica de Chocolate’. Johnny é um baita ator, não há dúvida, mas esses tipos, digamos, sui generis, já estão meio que cansando, e em ‘Alice’ sua performance é burocrática, sem carisma ou alguma boa sacada, nada que memorável. Já o sumido Crispin Glover – famoso por George McFly, o pai de Michael J. Fox em ‘De Volta para o Futuro’, e pelo Andy Warhol de ‘The Doors’ –, como o Valete de Copas, esse, sim, é digno de lembrança. E a boa atriz Anne Hathaway, que fez da atormentada Kym de ‘O Casamento de Rachel’ um dos papéis femininos mais marcantes dos últimos tempos, está francamente enjoada de tão insossa como a Rainha Branca. As vozes, sim, compõem um capítulo à parte: o veterano Christpoher Lee, herói de Burton (como Jabberwocky), o cult Stephen Fry (o Gato Risonho), o sempre seguro Alan Rickman (que faz a Lagarta). Este último dá vida a um personagem animado digitalmente de uma maneira que seus colegas que interpretam os personagens ‘de-carne-e-osso’ não alcançam.
Quanto à trama, a primeira metade do filme é verdaddeiramente enfadonha. Na segunda, que é quando se dá o esperado enfrentamente de Alice & Amigos x Jabberwocky, a coisa melhora um pouco, mas não o suficiente pra afastar aquele sentimento de que a coisa, por algum motivo, não funcionou. A roteirista tem história significativa na Disney: é Linda Woolverton, a mesma de ‘A Bela e a Fera’, o filme que recuperou a companhia no começo dos anos 1990, e ‘O Rei Leão’. Burton, que iniciou sua carreira na Disney mas logo foi dispensado, voltou a trabalhar para a companhia inúmeras vezes, e admite ter uma relação de amor e ódio com a empresa. Paradoxalmente, seus filmes mais recentes cada vez mais parecem ter um quê de ‘filme-família’, já há muito distantes da melancolia que caractarizava seus antigos trabalhos. Pode ser que a felicidade recém conquistada – seu casamento com Helena Bonham-Carter em 2001 e a paternidade – tenha retraído a poesia triste que brotava naturalmente. E é provável que Burton hoje seja também um nome de tal maneira consolidado no universo pop – vide o sucesso estrondoso do filme e da mostra recém-finda de seus desenhos, fotos, storyboards, maquetes e brinquedinhos no MoMa (terceira maior afluência de público na história do museu, só perdendo para Picasso e Matisse) – que também já não tenha aquela inquietação de outrora, ainda que tenha realizado recentemente belíssimos trabalhos que enfatizam esse novo momento pessoal: ‘A Fantástica Fábrica de Chocolate’ já era uma clara fábula moral sobre a importância da família na versão de versão dos anos 1970 com Gene Wilder, e o tema ganhou ênfase ainda maior no filme de Burton, com o acréscimo do história pessoal de Willy Wonka e seu desentendimento com o pai; o tema de reconciliação paterna também marca o subestimado ‘Peixe Grande’.
Tudo isso são conjecturas – até banais, admito. Psicologia de almanaque. Também não é o caso de entrar no mérito se a famigerada teoria do autor dos ‘jovens turcos’ da Cahiers Du Cinéma nos anos 1950 (Truffaut, Godard, Rohmer) ainda tá valendo, naqueles seus preceitos mais caros, tipo dividir o universo dos realizadores entre os meros artesãos e os verdadeiros autores, cuja obra possui uma linha mestra que a perpassa, revelando aspectos da biografia do diretor. Discussão longa e infrutífera, dado o espaço. Mas se a tomarmos como válida ainda nos dias de hoje, há que se considerar que ‘Alice No País das Maravilhas’ tem todas as características mais flagrantes do cinema de Tim Burton. Só não tem, parece, a velha paixão, e aquela ternura latente pelos esquisitos/deslocados – ainda que Burton tenha declarado que sinta uma certa tristeza em Alice, o que faz identificar-se com a personagem. Mas ‘Alice’ não emociona, esse é o fato. Quem sabe no próximo trabalho, uma nova versão de ‘Frankenweenie’, seu primeiro curta, de 1984. Vamos esperar.
PS I – dica: uma bela pedida nas locadoras é a versão (com animação em stop-motion mais a garota Krystina Kohoutová no papel principal) de ‘Alice No País das Maravilhas’ dirigida pelo tcheco Jan Svankmajer em 1988, simplesmente chamada ‘Alice’. Também é uma adaptação e não uma transposição quase literal do livro de Lewis Carroll, mas esta, sim, acerta em cheio. E perturba.
PS II – Falando em versões para clássicos do cine fantástico, vem aí um remake do perturbador ‘O Bebê de Rosemary’, do estuprador de criancinhas Roman Polansky, desta vez capitaneada por Michael Bay, de ‘Os Transformers’. Oremos.
A dupla dinâmica: vários bons serviços prestados, mas esse não colou
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