terça-feira, 18 de agosto de 2009

Tony Wilson, o verdadeiro último romântico

Filmes de rock não são coisa particularmente frequente - e os bons, então, são raros. As narrativas ficcionais – tipo 'rock-cine-biografias' – não chegam a caracterizar exatamente um subgênero cinematográfico, ao contrário dos documentários, embora ambos sofram a influência decisiva da linguagem do vídeo-clipe, e raramente interessam a quem é identificado com o universo em questão. Daí, talvez, a pouca repercussão junto à crítica cinematográfica, salvo exceções, tipo 'The Last Waltz' ou 'Stop Making Sense'. São basicamente filmes para serem curtidos, na maioria, e a questão afetiva é, no fim das contas, mais importante do que qualquer outra coisa – o mesmo se dá com documentários futebolísticos, de interesse ainda mais restrito e voltados para um público mais específico.

Digo isso de saída, já me vacinando, porque um dos filmes que mais me emocionaram e divertiram nos últimos anos tá saindo mês que vem em DVD – ficou pouquíssimo tempo em cartaz nos cinemas, mas vez que outra aparece na programação da TV a cabo. Não sei se ‘A Festa Nunca Termina’ (ou ‘24-Hour Party People’, o que dá quase na mesma) , do inglês Michael Winterbottom – do polêmico ‘9 Canções’, do contudente ‘O Caminho para Guantánamo’ e de dramático ‘O Preço da Coragem’ – é um grande filme, de méritos estéticos ímpares ou coisa que o valha. Sei que conta – muito bem e com muito senso de humor – uma história que me é cara, a vida de um sujeito por quem nutro profunda admiração: Tony Wilson, o fundador do selo britânico Factory e um dos donos do falecido Haçienda, uma das casas noturnas mais quentes de Manchester por um bom tempo.

Wilson era um excêntrico repórter e apresentador da emissora Granada Television, de Manchester. Comandava um programa chamado ‘So It Goes’, uma espécie de revista cultural, no início dos anos 1970, e mais tarde seria também um dos âncoras do ‘Granada Reports’, o jornal da emissora. Detestava a cena musical de então (NOTA que se faz necessária: eu também, até hoje e cada vez mais), aquele período chinfrim de transição, de um conformismo e auto-indulgência quase absolutos, que vai do fim da era psicodélica ("o sonho acabou", manja?) até a explosão punk – que justamente deu o insight pra que Wilson mudasse sua vida e a cena rock de sua cidade. A história, todo mundo que acompanha a música pop com interesse conhece de cor: Tony foi ver um show dos Sex Pistols no Lesser Free Trade Hall de Manchester em junho de 1976 e, impressionado – sua definição do espetáculo foi "nada menos do que uma epifania" -, resolveu montar um selo de gravação que desse oportunidade à nova música, nervosa, sombria, desafiadora que surgia nas garagens do Reino Unido. A Factory Records então é fundada em 1978, tendo como bandas-síntese o Joy Division e o Durutti Column. O produtor das principais gravações do selo era um mago dos estúdios, o temperamental, arrogante e seboso Martin Hannett, roubado da Rabid Records. A grana era escassa, e assim continuou até o final: todo lucro que algum produto saído da "fábrica" rendia era reinvestido na gravadora ou ... torrado em festas, drogas, emprestado ou adiantado para as bandas, que davam um jeito de gastar tudo na farra e não produzir porra nenhuma: foi o caso dos doidões Happy Mondays, que conseguiram convencer Wilson a dar-lhes uma quantia razoável pra refugiarem-se nas Bahamas, onde preparariam um novo álbum, longe do burburinho de Manchester e aproveitariam pra se desintoxicar – o cantor Shaun Ryder, além de consumidor contumaz de ecsasy (chegou a temer ficar encarcerado no Brasil, às vésperas da vinda dos HM para o Rock in Rio 2, pois pretendia desembarcar aqui com vasta munição), tinha problemas sérios com a heroína, e uma vez iniciado tratamento pra se livrar da droga utilizando metadona, acabou previsivelmente viciado nas duas. Claro que não gravaram porra nenhuma, e a grana só serviu pra forrar ainda mais o estoque de porcarias consumidas apaixonadamente pelo grupo no Caribe. Nem o sucesso estrondoso de ‘Blue Monday’, do New Order, até hoje o single independente mais vendido da história, aliviou o caixa da gravadora. Mas Wilson não tava nem aí, achava que tinha uma missão, e era isso que interessava - o que ocasiona quase cenas de pugilato com seus sócios. É comovente o apoio que dá a Vinny Reilly (durutti Column), quando este toca a sua música – difícil, inclassificável, até para os padrões radicais da época – para quase ninguém no Haçienda.

O filme basicamente é dividido em duas partes, cada uma correspondendo a uma das duas cenas musicais que tiveram a Factory em seu epicentro: o lúgubre primeira leva pós-punk de fins da década de 1970 e sua quase antítese, a colorida e hedonista cena rave – que apelidaria a cidade de ‘Madchester’ – da virada dos 80 para os 90. Na primeira, o enfoque é o drama do Joy Division e seu depressivo, epilético e por fim suicida cantor Ian Curtis – num registro bem mais plausível do ator Sean Harris do que o entregue por Sam Reilly em ‘Control’: percebe-se a dor e a tormenta sem fim de Ian em seu olhar, ao contrário do que ocorre no filme de Anton Corbijn. Na segunda, a doideira inconsequente e o hedonismo ‘sobre o amanhã ainda nem pensei’ dos Happy Mondays de Shaun Ryder – o ator Danny Cunningham, além de muito parecido com o frontman dos Mondays, está particularmente engraçado no papel. Por sua vez, o retrato afetivo/cômico de Wilson é valorizado pela brilhante atuação de Steve Coogan, cuja performance chegou a ser elogiada por seu colega e compatriota Alfred Molina no sketch que ambos dividem em ‘Café e Cigarros’, de Jim Jarmusch. Participantes das duas cenas de Manchester aparecem no filme: Mark E. Smith (The Fall) surge na fila do Haçienda, Vinny Reilly (Durutti Column) cruza a tela em um show, assim como Mani, dos Stone Roses.

Então, pra finalizar, voltando lá ao início do texto, assim que adquirir minha cópia de ‘A Festa Nunca Termina’, vou poder rever o filme e, quem sabe, chegar a uma conclusão se a obra vai além da diversão (garantida) e do retrato afetivo de uma época (ou duas, pra ser mais exato) importante da música pop. Só sei que vou me divertir de novo e de novo e de novo ... O filme é pra quem se identifica com gandaia, anarquia, terrorismo cultural, hedonismo. E pra quem tem sentimentos, é claro. (A propósito: Tony Wilson faleceu há dois anos, em agosto de 2007, aos 57 anos, vítima de ataque cardíaco. Ele tinha câncer no fígado.)


O verdadeiro Wilson na labuta: herói de quem ama o rock de verdade

O Wilson do filme, interpretado pelo impagável Coogan, na companhia de sua primeira mulher, Lindsay/Shirley Henderson: estupefato após ver os Pistols


PS - a trilha, claro. É essa aí abaixo, saiu no Brasil na época - hoje, talvez, requeira uma busca mais demorada:

1. Anarchy in the UK (Sex Pistols)/2. 24 Hour Party People (Happy Mondays)/3. Transmission (Joy Division)/4. Ever Fallen in Love (Buzzcocks)/5. Janie Jones (The Clash)/6. New Dawn Fades (New Order featuring Moby)/7. Atmosphere (Joy Division)/8. Otis (The Durutti Column)/9. Voodoo Ray (A Guy Called Gerald)/10. Temptation (New Order)/11. Loose Fit (Happy Mondays)/12. Pacific State (808 State)/13. Blue Monday (New Order)/14. Move Your Body (Marshall Jefferson)/15. She's Lost Control (Joy Division)/16. Hallelujah [Club Mix] (Happy Mondays)/17. Here to Stay [Full Length Vocal] (New Order)/18. Love Will Tear Us Apart (Joy Division)

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